MOSCOU, RÚSSIA (FOLHAPRESS) – Uma das novidades geopolíticas da Guerra Fria 2.0, a crescente parceria entre a Rússia e a China é marcada por episódios de desconfiança, particularmente do lado de Moscou.
No dia 5 do mês passado, por exemplo, o presidente Vladimir Putin reuniu-se em Samara (sudeste russo) com os dirigentes das principais empresas sob o guarda-chuva da estatal Corporação Unificada de Motores.
Como o nome diz, o conglomerado reúne fabricantes de motores, principalmente de aviões e de foguetes, como a Aviadvigatel. Na abertura do encontro, transcrita no site do Kremlin, Putin pediu a aceleração no desenvolvimento do PD-26, o primeiro motor de alto empuxo russo, destinado a aviões de transporte militar e a modelos civis de grande porte.
O que não é público, e foi descrito por pessoas ligadas ao setor aeroespacial russo à Folha, foi o debate se os chineses deveriam ser chamados para ajudar no trabalho. A Aviagdvigatel, dona do projeto, é uma das muitas empresas do país com dificuldades devido à falta de acesso a tecnologia ocidental devido à Guerra da Ucrânia.
Segundo o relato, Putin desestimulou a parceria com os chineses, o que foi lido como um sinal de falta de confiança em Pequim. O histórico é complexo: a China comprou caças russos só para vê-los serem objeto de engenharia reversa, a popular cópia, e hoje desenvolve sozinha seus novos modelos.
Apenas dois dias antes, o presidente assistia ao lado do líder Xi Jinping um desfile militar colossal na capital chinesa, celebrando os 80 anos do fim da Segunda Guerra Mundial. O evento coroou dias de uma visita agitada, em que o russo reafirmou sua “amizade sem limites” assinada em acordo 20 dias antes da invasão da Ucrânia, em 2022.
Participaram da festa outros líderes, com destaque para a Índia, ainda mais desconfiada da China devido à rivalidade estratégica na Ásia, mas presente devido à pressão que sofre da guerra tarifária de Donald Trump.
O azedume potencial entre Moscou e Pequim chega a níveis anedóticos, envolvendo até as artes. Há duas semanas, o próprio Putin apareceu em um telão para prestigiar o Intervision, versão ressuscitada de um festival de música de países não alinhados ao Ocidente na Guerra Fria.
Nesta encarnação, visando contrapor-se ao Eurovision do qual a sempre presente Rússia foi excluída após a guerra, a competição reuniu 19 países, como China, Brasil e até dos Estados Unidos, cujo representante desistiu na última hora.
Mas o vencedor foi o cantor Duc Phuc e sua música “Phu Dong Thien Vuong”, que homenageia um herói mítico do Vietnã, líder de batalhas vitoriosas contra a China. Segundo relato que circula na elite russa, a delegação chinesa fez chegar um protesto ao Kremlin.
Como seria evidente, a geopolítica tem superado no geral tais episódios. A relação comercial entre os países que quase foram à guerra nuclear em 1969 e se viram afastado pela ofensiva de charme de Washington sobre Pequim na década de 1970, nunca foi tão boa.
Em 2020, a corrente comercial entre russos e chineses era de US$ 108,2 bilhões, disparou com a guerra e em 2024 chegou ao recorde histórico de US$ 244,8 bilhões. Agora, houve uma redução na intensidade das trocas, que foram favoráveis a Moscou em US$ 15 bilhões no ano passado.
Parte disso se explica por uma redução na importação chinesa de petróleo russo, um efeito do maior cerco sobre o setor pelos mecanismos de sanções. De US$ 15 bilhões comprados no último trimestre de 2024, Pequim levou US$ 11,7 bilhões no segundo trimestre deste ano em óleo do parceiro.
Entre integrantes da elite russa, cujo governo fala abertamente no risco da temida estagflação neste ano, há também o temor da consolidação da desigualdade na troca. Isso deve aumentar se o megagasoduto Força da Sibéria 2 for, como anunciado, enfim construído.
A Rússia transformou-se no principal fornecedor de energia para a China, mas em troca virou grande consumidora de bens de alto valor agregado. Nas ruas russas, os carros chineses se multiplicam, assim como celulares.
Por óbvio, como uma economia dez vezes maior, Pequim sempre seria a sócia majoritária no clube. Mas o sentimento da antiga superpotência da Guerra Fria é de que é preciso manter o status de igualdade, até porque em força bruta o arsenal nuclear de Moscou ainda é quase dez vezes superior ao dos chineses.
O sucesso da parceria também é medido na retórica. Tendo tomado a frente do Brics, Xi tornou o bloco uma agremiação de nações que ou querem distância dos EUA ou são forçadas a isso pelas circunstâncias de Trump.
O cenário cai como uma luva para Putin e sua denúncia do Ocidente, mas na hora dos negócios a China sempre priorizará os EUA, com quem têm sua maior relação econômica e grande interdependência.
Isso dito, a aliança Otan elegeu a cooperação militar sino-russa como uma prioridade estratégica, com seu secretário-geral, Mark Rutte, fantasiando um ataque conjunto dos rivais a Taiwan e a algum país do Báltico. Exagero à parte, a sinergia entre as forças de Putin e Xi é maior do que em qualquer momento da história.
O jornalista viajou a convite da Rosatom