SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Fiscalizar o destino das garrafas vazias de destilados. Essa prática básica poderia ter impedido a onda de adulteração de bebidas com metanol e evitado mortes, defende quem atua na reciclagem de embalagens.
Segundo esses especialistas, não faltam leis regulamentando a circulação final, mas o tratamento dado às garrafas vazias é nitidamente falho.
“O que a gente tem visto com o metanol nos últimos dias é um problema de adulteração muito grave, mas para isso dar certo, você necessariamente precisa de uma garrafa”, diz o Lucien Belmonte, presidente da Abvidro (Associação Brasileira da Indústria de Vidro).
“Se não tiver a garrafa do gin Tanqueray, do uísque White Horse, da vodca Absolut, a garrafa das marcas mesmo, a falsificação não vai dar certo.”
A Abvidro quer aproveitar a tramitação de projetos de lei que defendem equiparar a adulteração de alimentos e bebidas a crime hediondo para mudar a visão sobre a posse das garrafas.
Hoje, se a polícia fizer uma batida em uma fábrica clandestina, vai enquadrar os criminosos pela produção da bebida falsificada. A entidade defende que ter as garrafas precisa ser uma infração adicional, que eleve a pena.
Belmonte explica, no entanto, que o problema maior esta em outra questão: em como as garrafas são tratadas nos estabelecimentos após o consumo. Explica que de 50% e 60% do mercado de bebida alcoólica destilada ocorre em bares, restaurantes ou hotéis.
Esses estabelecimentos são regidos pela política nacional de resíduos sólidos, afirma o executivo. Não faltam leis para regulamentar o destino das garrafa vazias. São Paulo, por exemplo, tem quatro que tratam da política de reciclagem, incluindo logística reversa de embalagens, onde entra garrafa de vidro. O executivo diz ainda que um decreto nacional impõe metas e indicadores de reciclagem para o material.
“O que falta é fiscalização, ou seja, acompanhar de perto se as empresas estão cumprindo as leis e para onde estão indo essas garrafas”, afirma.
No sistema adotado no Brasil, a maior parte do lixo reciclável é administrado por catadores. Os criminosos criaram então um comércio paralelo, que faz a cooptação pelo dinheiro, dizem os especialistas.
Segundo Belmonte, se numa cooperativa uma garrafa de vidro vale menos de R$ 1, nas ruas, um fornecedor do comércio de bebida ilegal paga de R$ 10 a R$ 200 por uma garrafa, a depender da marca da bebida associada à embalagem.
Garrafas vazias são vendidas até na internet, em sites de comércio online.
O engenheiro Chicko Sousa aponta o mesmo problema. Ele defende um ajuste para a reciclagem das garrafas. Fundador da GreenPlat, que usa tecnologia de ponta para rastrear as coletas seletivas e o material reciclado, ele acaba de ganhar o Prêmio Empreendedor Social por seu trabalho na área.
“A garrafa da bebida destilada, vamos ser muito sinceros, é gerada em pontos comerciais. Muitos donos deixam o descarte da garrafa para a equipe, que vai ganhar dinheiro como der, então, a fiscalização no retorno dessa embalagem deveria ocorrer nos locais de consumo comercial. A cobrança precisa ser lá”, afirma.
Ele faz uma associação com o pneu. Virou um imenso problema ambiental, até que veio uma lei enérgica associada a uma intensa fiscalização. Hoje, para cada pneu produzido ou importado, os fabricantes de pneus têm que comprovar que coletaram um por um.
“Bares, restaurantes, hotéis deveriam ter uma obrigação legal muito maior de comprovação que 100% das garrafas que foram compradas entraram no processo de logística reversa, não atrelada a catadores, mas a empresas que atuam especificamente nessa atividade.”
Seria uma mudança estrutural. Existem empresas muito bem organizadas e com musculatura na reciclagem de vidro, mas até por uma questão social, catador e cooperativas de catadores se transformaram em peça chave dessa engrenagem da reciclagem.
A Massfix dá uma dimensão dessa complexidade. A empresa atua nesse segmento há 34 anos. Com sede Mogi das Cruzes, além da base em São Paulo, tem estruturas no DF e em outros seis estados. Ao todo, incluindo parceiros, atende 18 estados.
No ano passado, ela processou 100 mil toneladas de vidro. Segundo o dado mais recente de reciclagem de vidro, apresentado pelo Ministério do Meio Ambiente, referente a 2023, o país reciclou cerca de 320 mil toneladas de vidro, o equivalente a 30% do consumo nacional.
Todo a coleta desse material é feita por cooperativas -700 ao todo, sendo 350 em São Paulo. Segundo o diretor comercial da Massfix, Rildo Ferreira, a empresa limpa as embalagens e transforma em cacos adequados para serem reutilizados nas industrias.
Em nota, a gestão Ricardo Nunes (MDB) disse, por meio da SPRegula, que o decreto nº 63.113/2024 criou um comitê composto por diferentes secretarias para fiscalizar e monitorar a logística reversa e o Plano de Gestão Integrada de Resíduos Sólidos. “O colegiado tem como atribuição coordenar as revisões do PGIRS, além de propor modelos de regulamentação e fiscalização da logística reversa no município.”
Além de citar que a política nacional de resíduos sólidos prevê responsabilidades compartilhadas entre poderes municipais, estaduais e federal, as empresas e a sociedade civil, a prefeitura disse que a lei de 2020 supriu a inexistência de um compromisso para que entidades gestoras firmem termos para aplicar logística reversa.
A reportagem da Folha identificou que na vida real reina o improviso no descarte. A maioria dos estabelecimentos deixa a equipe dar um fim para as garrafas, sem dar atenção para onde vão. Quem se preocupa com o destino final, no máximo quebra a embalagem.
Um dono de bar do Planalto Paulista, que preferiu não ter o nome divulgado, afirmou à reportagem que recebe diversas ofertas para vender garrafas vazias, mas nunca aceitou. São R$ 5 na de uísque e R$ 3 na de vodca.
Costuma inutilizar a embalagem porque sabe que a garrafa pode acabar indo para mãos de criminosos. No entanto, já teve de mudar de estratégia.
Antes, por exemplo, arrancava o bico de algumas marcas para inutilizar a embalagem, pois sabe que os falsificadores buscavam no lixo. Mas descobriu que os criminosos ainda assim aproveitavam a garrafa. Passou a quebrar em partes. Bate com a garrafa na guia da calçada antes de descartar, o que é um perigo, pois pode acabar se cortado.
É um abismo em relação ao sistema implantado em outros países.
Na Alemanha, por exemplo, o sistema de coleta de garrafas de vidro é altamente eficiente e faz parte do sistema nacional de devolução de embalagens, criado para incentivar a reciclagem e reduzir o desperdício, promovendo a reutilização de embalagens, incluindo garrafas. Apesar de alguns moradores de rua utilizarem a reciclagem como alternativa de renda, o catador não é uma atividade com a dimensão alcançada no Brasil.
O próprio cidadão cuida da reciclagem. Ao comprar bebidas em garrafas de vidro ou plástico, o consumidor paga um depósito adicional no preço do produto. O valor varia entre 8 e 25 centavos de euro, dependendo do tipo de embalagem. Existem máquinas em shoppings e supermercado para a devolução, que leem o código de barra na garrafa e contabilizam o valor a ser restituído. O cupom pode ser trocado por dinheiro ou abatido em novas compras. Embalagens não reutilizáveis devem ser depositadas em locais reservados para a coleta.
Não faltam leis para tratar do destino das garrafas e outro produtos recicláveis
Lei nº 13.478, de 2002, da Prefeitura de São Paulo, organiza o Sistema de Limpeza Urbana e institui taxas para a gestão dos resíduos Lei nº 12.300, de 2006, que estabelece a Política Estadual de Resíduos Sólidos Lei nº 14.973, de 2009, trata da coleta seletiva para grandes geradores Lei nº 12.305/2010 instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS no Brasil Decreto 11.300/2022 regulamenta o § 2º do art. 32 e o § 1º do art. 33 da Lei nº 12.305 e institui o sistema de logística reversa de embalagens de vidro Lei nº 17.806, de 2023, regulamenta a gestão de resíduos em eventos no estado