FOLHAPRESS – Quando Chuck Lorre apresentou a ideia da série “Two and a Half Men” para o canal de TV americano CBS, em que dois irmãos que são o oposto um do outro, um totalmente relax, bonitão, rico e mulherengo, outro tenso, feioso e eternamente sozinho vivem juntos e criam o filho de um deles, descreveu o personagem principal como “um cara tipo o Charlie Sheen”. Os executivos toparam fazer o piloto com uma condição: que ele conseguisse o verdadeiro Charlie Sheen.

Era o começo deste milênio, a série estreou em 2003, e Charlie, que completou 60 anos no último dia 3, então com 30 e poucos anos, tinha um histórico já bastante conturbado com mulheres, drogas, armas e até violência doméstica. Ele era noivo da atriz Kelly Preston em 1990 —que depois se casou com John Travolta —quando acidentalmente atirou no braço dela.

Também era cliente assíduo da cafetina conhecida como Madame Hollywood, Heidi Fleiss, que, numa daquelas tramas rocambolescas da justiça americana, foi presa por sonegação de imposto, e Charlie Sheen foi a testemunha chave contra ela no julgamento. No documentário da Netflix a gente aprende, entre outras coisas muito elegantes, que Sheen foi chantageado pela polícia da Califórnia, e que, se não testemunhasse contra ela, seria ele preso como cafetão.

Mas como tudo isso aconteceu no século passado, aquela Babilônia pré-celulares e internet rápida, em que só era bem informado quem se esforçasse para isso, e não o contrário, seja de notícias reais ou fabricadas, nada era tão ruim para Charlie Sheen que causasse algo próximo de um cancelamento. Aliás, essa palavra era usada com bastante moderação, e em contextos mais controlados —por exemplo quando a pessoa marca dois compromissos no mesmo horário, então cancela um deles. Nada parecido com sentenciar um ser humano ao purgatório em vida, como parece ser o caso nos nossos tempos.

De volta ao documentário, curiosamente chamado “AKA Charlie Sheen”, que significa “também conhecido como Charlie Sheen”, na abreviação em inglês “aka”, “also known as”. O nome verdadeiro do ator é Carlos Estevez. Ele mudou para Charlie Sheen para combinar seu apelido de infância com o sobrenome artístico de seu pai famoso, o ator Martin Sheen —que, na verdade, se chama Ramón Estevez.

Não faz mesmo muito sentido. Mas não é em busca de sentido que alguém liga a TV e dá o play nesse programa. É eletricidade o que está em jogo aqui, emoções baratas, gente rica, bonita e famosa se comportando mal. Sheen é o ator que abriu mão do maior salário da história das sitcoms americanas até hoje —a oferta que ele recusou foi de US$ 2 milhões por episódio para continuar no elenco de “Two and a Half Men” —e saiu em uma jornada, aí já no século 21, mais precisamente 2011, fazendo de sua loucura um espetáculo.

Seu amigo de infância Sean Penn faz várias aparições, os dois cresceram juntos em Los Angeles, faziam parte de uma turma bem gauche que morava na praia de Malibu antes de Malibu ser o que virou hoje, um lugar exclusivo para milionários. Charlie tinha outros três irmãos, Sean mais um e Rob Lowe, amigo de escola de ambos, brincavam juntos e faziam filminhos com uma câmera Super 8 que Martin Sheen deu de presente para os filhos.

Além disso, Martin fazia questão de manter sua família sempre unida, então levou a mulher e os quatro filhos pequenos —Charlie tinha 9 anos—, para as Filipinas por quase um ano enquanto filmava “Apocalypse Now”, com Marlon Brando, Dennis Hopper, Harrison Ford, Robert Duvall e Lawrence Fishburne. As filmagens foram mais que atribuladas, com o detalhe extra de que Martin Sheen sofreu um infarto no set. Os bastidores desta aventura deram origem a um documentário sensacional, “O Apocalipse de um Cineasta”, dirigido pela mulher do diretor, Eleanor Coppola, e lançado em 1991.

Curiosamente, nem Martin Sheen nem Emilio Estevez, o irmão bem comportado de Charlie, mas com mil vezes menos carisma, dão depoimentos neste documentário. Mas a Madame Hollywood está lá, agora bem longe de poder ser chamada de madame, morando num casebre aparentemente feito a mão e na companhia de vários pássaros da família das araras. E duas de suas ex-mulheres —foram três casamentos—, Denise Richards e Brooke Mueller, dão longas entrevistas. Ambas continuam amigas do ex-marido, que também convive muito bem com seus cinco filhos.

O grande companheiro de vida louca dele foi o ator Nicolas Cage, que também não dá entrevista, mas aparece muito em imagens de arquivo e em histórias deliciosas de tão malucas. O fio condutor é o próprio Charlie Sheen, que não é mais aquele homem lindo que era antes de se afundar completamente no poço da autodestruição. Mas ele é um tipo de malucão de quem nunca dá para ter raiva, não se mete com política, não trata ninguém mal em público, não se mostra preconceituoso nem se acha no direito de nada.

Claro que ele deixa uma trilha imensa de gente com muito rancor, afinal quando abandonou a série e foi substituído por Ashton Kutcher nas duas temporadas finais, formalizou o começo do fim de um emprego ultra lucrativo para muita gente. Madame Hollywood também parece não se conformar com a traição do ex-cliente VIP, já que, no negócio dela, mais até do que aparência e performance, a discrição é o xis da questão.

E ela mesma nunca entregou ninguém. Só dá uma dica preciosa a uma certa altura. Ela diz: “pensa em alguém famoso ou poderoso nos anos 1990, qualquer pessoa. Foi meu cliente”.

“AKA Charlie Sheen” não é um documentário denúncia, mas também não chega a ser um tributo. O filme de Andrew Renzi consegue um bom equilíbrio entre abrir espaço para que o ator conte sua versão com franqueza, ao mesmo tempo em que ouve pessoas com opiniões e experiências diferentes da do protagonista e evita que tudo vire um longo pedido de desculpas. Denise Richards e Brooke Mueller lembram bem o caos de ser casadas com ele. Jon Cryer também não refresca a tristeza e o espanto de viver o colapso de “Two and a Half Men”.

Chris Tucker reforça que, por trás dos infinitos memes, havia um cara que foi amado por Hollywood durante um tempo. Seu irmão mais velho, Ramon Estevez, representa a família, que nunca deixou de tentar salvá-lo. Até o traficante pessoal de Charlie Sheen, que perdeu o emprego quando o ator foi finalmente encurralado pela vida e forçado a largar o vício, aparece e conta sua versão da história. É comovente. Quando parou com as drogas, Charlie Sheen comprou um apartamento e deu uma grande quantia de dinheiro para o traficante, já que não pagaria mais uma fortuna todo mês pelas drogas.

Visualmente, o documentário vibra. Salta de filmagens caseiras granuladas para tapetes vermelhos reluzentes e explosões em talk shows, lembrando o quanto da implosão de Sheen aconteceu diante de todo mundo. Há um ritmo na edição que espelha o caleidoscópio que era a sua vida.

E quando o ritmo desacelera e volta a Sheen quieto, sóbrio, um adulto, um produto final, resultado da soma de seus erros e acertos, sortes e azares, o contraste é emocionante. Ver o homem que dizia que tinha sangue de tigre nas veias e criou o abjeto slogan para si mesmo “winning”, vencendo, sentado, sereno, admitindo tudo que fez, é bonito de ver.

O documentário funciona porque não tenta transformar a história dele em um roteiro limpinho com final feliz. As contradições estão todas lá: o carisma e a crueldade, o sucesso e o fracasso, o bom e o mau. E, na vida como na arte, pelo menos na de Charlie Sheen, o mau é bem mais divertido.

AKA CHARLIE SHEEN

– Avaliação Bom

– Onde Netflix

– Produção Estados Unidos, 2025

– Direção Andrew Renzi