SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Repasses de municípios a organizações sociais de saúde (OSSs) cresceram 454% em cinco anos em São Paulo, estado que concentra o maior número dessas entidades no Brasil segundo levantamento do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), vinculado ao Ministério do Planejamento.

O aumento ocorre ao mesmo tempo que a fiscalização dos recursos, de acordo com órgãos de controle externo, é pouco transparente. Em nota, a CNM (Confederação Nacional dos Municípios) afirmou que “a ausência de padronização normativa nacional, a insuficiência de indicadores claros e a falta de bases de dados consolidadas são pontos que afetam diretamente a qualidade das políticas públicas”.

A CNM frisa, porém, que sobretudo os municípios de pequeno e médio porte têm limitações para avaliar contratos complexos como os de OSSs e deveria haver apoio de políticas públicas para que a responsabilidade não recaia apenas sobre os gestores locais.

“É fundamental que a União e os órgãos de controle apoiem com padronização, capacitação e instrumentos de transparência. Só assim o modelo de OSS poderá entregar resultados efetivos em benefício do cidadão.”

Dados do TCE-SP (Tribunal de Contas do Estado de São Paulo) mostram que despesas de prefeituras paulistas no âmbito de contratos de gestão na saúde —quando se delega o gerenciamento de unidade a alguma OSS, por exemplo— saltaram de R$ 1,6 bilhão em 2019 para 8,6 bilhões em 2024. Os valores foram corrigidos pela inflação.

No mesmo período, a quantidade de habitantes atendidos por esses contratos cresceu 275,2%, de 4,5 milhões para 16,9 milhões.

O modelo terceirizado dispensa procedimentos das licitações tradicionais e permite contratações mais ágeis, tanto de profissionais como de insumos. Um estudo do Ieps (Instituto de Estudo para Políticas de Saúde) publicado em outubro do ano passado concluiu que a gestão por OSSs aumenta o desempenho em unidades hospitalares, sobretudo quando administradas por entidades mais sólidas e experientes.

Mas a explosão de contratos não veio acompanhada de maior rigor sobre o destino dos recursos, afirma relatório de avaliação da CGU (Controladoria-Geral da União) divulgado no início de 2024. Foi o último levantamento nacional do órgão a respeito do tema.

Segundo a CGU, a falta de controle preventivo e a seleção inadequada de parceiros privados “têm ensejado toda sorte de desvios de recursos públicos, com sério comprometimento do êxito desse modelo de parceria”.

Auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) publicada em dezembro de 2023 teve conclusão semelhante. O relatório final identificou “riscos de fraude e corrupção, a exemplo de leis desenhadas para facilitar fraude na seleção de OSs ou editais direcionados a determinada organização”.

A auditoria ouviu um delator da operação Calvário, deflagrada em dezembro de 2018 para apurar desvios na saúde na Paraíba. Ele disse que uma das fragilidades está na qualificação das organizações O procedimento, que define se uma OSS está apta a celebrar contratos, é feito pelos próprios municípios e pode conter requisitos específicos aos quais apenas determinada entidade atende.

A última grande operação sobre OSSs, no início de agosto, mira contratos de até R$ 1,6 bilhão firmados com a organização social Hospital Mahatma Gandhi. Ainvestigação do caso aponta a existência de um “departamento extraoficial para pagamento de propinas, desvios de recursos e expansão ilícita de atividades”. A diretoria da OSS foi afastada.

Procuradas, as defesas dos diretores não comentaram o mérito do caso, que tramita sob sigilo. Disseram, contudo, que houve dificuldade para acessar os autos e que “a apuração se assenta em presunções manifestamente infundadas”.

POLÍTICA PREVENTIVA

Na opinião do advogado Sylvio Alarcon, doutor em direito constitucional pela USP (Universidade de São Paulo), o maior problema está na ausência de uma política que previna o uso irregular de recursos dentro dos contratos.

“Vemos movimentos importantes dos tribunais de contas e do próprio Ministério Público colocando lupa sobre como essas verbas são utilizadas. Mas é algo que vem depois, quando o estrago, se existente, já está feito”, afirma Alarcon.

Em julho, a Comissão de Saúde da Câmara dos Deputados aprovou projeto que autoriza prefeituras a rescindir contratos com OSSs por dívidas trabalhistas. O texto também obriga as entidades a cumprir dispositivos da LAI (Lei de Acesso à Informação) —algo que, para o advogado, equivale a “chover no molhado”.

A própria LAI já diz que entidades privadas sem fins lucrativos que possuam contratos de gestão estão sujeitas à norma. “A intenção é ótima, mas a previsão já existe”, diz Alarcon. Para ele, alterações no regulamento das OSs têm de ser estruturais.

O Senado chegou a aprovar projeto de lei (PL) de José Serra (PSDB-SP) que altera dispositivos da lei 9.637, de 1998, um dos principais regulamentos das OSSs. Desde 2018, o texto segue na Câmara.

Entre as mudanças previstas está a obrigação de que OSSs mantenham certificados que atestem a regularidade do serviço ofertado e da própria instituição. O texto ainda proíbe contratos com entidades cujas contas tenham sido rejeitadas nos últimos cinco anos ou que tenham na diretoria “pessoa cujas contas relativas a parcerias tenham sido julgadas irregulares nos últimos oito anos”.

Enquanto o debate no Congresso não avança, estados, municípios e entidades implementam mecanismos de boas práticas de gestão no terceiro setor.

Santa Catarina, por exemplo, exige desde 2006 que recursos a OSSs sejam repassados por bancos oficiais, algo que o Ministério da Saúde tornou obrigatório apenas em 2023.

Em Fortaleza, o Hospital Waldemar Alcântara passa por auditorias semestrais de um grupo multiprofissional interno, que avalia a qualidade assistencial e os protocolos de segurança.

Em junho, a Prefeitura de São Paulo inaugurou sistema eletrônico para reforçar a fiscalização de entidades privadas que gerenciam unidades de saúde. As OSs têm de fornecer, em tempo real, dados de contratações, aquisições ou metas de produção. O modelo antigo, disse à Folha o promotor Arthur Pinto Filho na ocasião, “não permitia cruzar informações e verificar se uma nota fiscal é fria”.

Esta reportagem foi produzida durante o 10º Programa de Treinamento em Jornalismo de Saúde da Folha, patrocinado pelo Laboratório Roche e pelo Einstein Hospital Israelita.