SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um jovem escravizado do Brasil colônia descobre que sua mãe foi rainha e que seu destino é reinar. Ele, então, foge com seus companheiros rumo a Palmares, para liderar o quilombo contra os algozes brancos. Com apenas 25 anos, Antonio Pitanga, consagrado um dos principais rostos do cinema novo, encarnava o herói libertário no filme “Ganga Zumba”, de Cacá Diegues, que em 1964 desembarcou no Festival de Cannes ao lado de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “Vidas Secas” para lançar o cinema brasileiro ao mundo.
Agora, aos 86, ele conta a história de outro levante. “Malês”, por ele dirigido e protagonizado ao lado de seus dois filhos, Camila e Rocco Pitanga, narra a Revolta dos Malês, rebelião de escravizados muçulmanos que eclodiu na Salvador de 1835.
Com a produção que chega nesta quinta (2) aos cinemas, é a segunda vez que Antonio assina como cineasta a primeira foi com “Na Boca do Mundo”, de 1979, um marco das produções nacionais por ressaltar o protagonismo negro.
Quando começou a atuar, ele lembra, ainda eram poucos aqueles na frente das câmeras com a sua cor. Hoje são mais, ainda que escassos na criação de roteiros e na direção de tramas. “Ainda é pouco pelo tamanho do Brasil”, diz, sem esmaecer do rosto o sorriso que conquistou as telonas ainda em branco e preto.
Vinte anos depois de “Ganga Zumba”, Antonio voltou a Palmares com “Quilombo”, também de Diegues. Camila, com sete anos, acompanhava o pai no set. “Era muito impactante. A cidade cenográfica, com aqueles corpos negros todos ornamentados. A Zezé Motta, aquela deusa. Era muito forte”, diz Camila, ao lado do pai. Antes da entrevista, ela aperta sua mão e pergunta se ele está ansioso.
Já veterana nas telinhas, a atriz viu sua popularidade nas redes deslanchar recentemente após viver Lola, a vilã cômica e expansiva de “Beleza Fatal”, primeira novela da HBO Max. Internautas recuperaram cenas suas como Bebel, seu personagem mais marcante na TV até então, do folhetim “Paraíso Tropical”, de 2007. Em “Malês”, ela interpreta a polêmica Sabina da Cruz comerciante e africana livre que denunciou o levante às autoridades, que reprimiram a revolta.
Em troca, ela recebeu isenção de impostos e pôde adquirir bens, que deixou para seus herdeiros e protegidos. “Ela estava tentando preservar o pouco que tinha. Que ética é possível quando todas as pessoas são submetidas a desumanização?”, diz Camila.
O filme mostra como Sabina temia o envolvimento de seu marido, Vitório, na revolta, o que poderia levar à punição de sua família. O casal vivia em conflito também por motivos religiosos ela era do candomblé, e ele, muçulmano.
Já Antonio interpreta Pacifico, líder religioso dos malês. Ainda escravizado, sua prisão para pagar uma dívida agita os ânimos entre seus seguidores entre eles, Vitório.
Com conflitos internos e externos, Sabina expõe os dilemas de existir como mulher negra em um país escravocrata, e se afasta de personagens planos que, por muito tempo, ocuparam tramas ambientadas no Brasil colônia mais numerosas ao representar os meandros da família real do que as várias revoltas do período.
“A TV caminhou algumas léguas no sentido de entender que não cabe mais uma visão onde a escravização é uma paisagem da história do Brasil, onde negros e negras são sujeitos passivos e vítimas de sua condição”, diz Camila, ao lembrar também de sua personagem Isabel na novela “Lado a Lado”, na Globo. “Somos sujeitos da nossa história, ainda que ela tenha sido passada para a gente parecendo que não.”
Não por acaso, transformar em filme o maior levante urbano de escravizados do país foi uma obsessão que acompanhou Antonio por décadas. O projeto começou a criar corpo há 12 anos, quando Manuela Dias, que hoje assina a trama do remake de “Vale Tudo”, assumiu o roteiro. “Nasci no Pelourinho. Se você nasce no Pelourinho, já vem cheio de história”, diz o ator. “A história do povo negro, a história do povo brasileiro, não está na vitrine. É preciso que seja contada.”
De certa forma, Antonio conseguiu. Não só com filmes históricos, mas também com seus personagens que deram vida a um Brasil cotidiano e político em sua realidade. “Imagine um ator negro protagonizando um filme na década de 1960. Era um grito político, de democracia, de brasilidade”, disse ele no palco do Prêmio Grande Otelo, no ano passado, ao lado de outros nomes históricos do cinema nacional como Diegues, Zelito Viana, Lucy Barreto, Ruy Guerra e Walter Lima Jr.
Antonio Luiz Sampaio estreou no cinema com “Bahia de Todos os Santos”, em 1960, como Pitanga, personagem que deu a ele seu sobrenome. Pouco tempo depois, participaria de “O Pagador de Promessas”, único filme brasileiro a vencer a Palma de Ouro em Cannes. Mas seu primeiro papel como protagonista foi pelas mãos de Glauber Rocha, dois anos depois, em “Barravento”.
Foi “Ganga Zumba” que tirou o ator da Bahia rumo à Cidade Maravilhosa, onde vive até hoje. Dali em diante foram mais de 50 filmes, entre eles “A Grande Cidade”, “Compasso de Espera” e “Zuzu Angel”, e outras tantas telenovelas, como “O Clone” e “Dona Beija”. Nos palcos, fez “Poder Negro”, no Teatro Oficina de José Celso Martinez.
“Ele bagunça o mundo com sensualidade”, afirmou Diegues sobre ele. Namoradeiro, como disse Maria Bethânia, uma de suas ex-namoradas, ele se relacionou com outros grandes nomes da efervescente cena artística brasileira, como as atrizes Ítala Nandi e Vera Manhães, mãe de seus filhos. Antonio, que cresceu sem pai, ficaria com a guarda dos dois.
“Malês” parece propor um encontro geracional. Antonio, da turma de Glauber, sonhava em criar um cinema que cortasse o “cordão umbilical de uma cultura europeia, americana e bolchevique”, diz. Atuar envolvia também enfrentar a repressão da ditadura militar, que minou o campo cultural por 21 anos.
Já Camila, formada nos bastidores da agitada vida artística do pai, é de uma leva de atores que fez cinema em paralelo à televisão, que conquistou um público mais amplo com as novelas e, com isso, se aproximou de uma tão sonhada indústria audiovisual.
Hoje, as reivindicações de pai e filha se encontram na regulamentação do streaming. A expectativa é que a lei possa impulsionar a produção nacional e, mais do que isso, consolidar o público das produções brasileiras. Assim, novos lançamentos não enfrentarão as dificuldades de financiamento como “Malês”.
“Hoje temos leis [de incentivo] que na época [do cinema novo] não tínhamos. Mas ainda não atende à demanda. O Brasil tem uma escolha para a sua própria história, porque ninguém pode levar 20 anos tentando produzir alguma coisa”, disse Antonio, no ano passado, quando “Malês” foi apresentado no Festival do Rio.
“A gente quer um percentual obrigatório, um fomento obrigatório, que vai favorecer não só o mercado audiovisual brasileiro, mas o mercado mundial, porque temos boas histórias para contar. Podemos dobrar o número de ‘O Agente Secreto’, de ‘Ainda Estou Aqui'”, diz Camila, sobre o momento coroado pelo primeiro Oscar do Brasil, em março, e pelos prêmios em Cannes para Kleber Mendonça Filho e Wagner Moura. “A regulamentação é organizar a casa, para que o público brasileiro possa ter um cardápio de produções nacionais no mercado estável.”
MALÊS
– Quando Estreia na qui. (2) nos cinemas
– Classificação 16 anos
– Elenco Camila Pitanga, Rocco Pitanga, Rodrigo dos Santos
– Produção Brasil, 2025
– Direção Antonio Pitanga