FOLHAPRESS – Em “Malês” existe uma espécie de eco do cinema novo, do qual Antonio Pitanga participou como ator em várias ocasiões. Claro que não estamos no cinema novo, mas o desejo de mostrar algo até hoje ignorado no Brasil e na história do Brasil está presente. Trata-se de uma revolta ocorrida na Bahia, século 19, que envolve desde a existência de escravizados de religião muçulmana até o fato de eles serem alfabetizados.

Claro, isso remete ao desejo cinemanovista de trazer ao cinema um Brasil desconhecido e, no caso, é possível supor, bem escondido. Essa conexão aparece no discurso das personagens masculinas com frequência: há um inconformismo com sua condição que se revela tanto no desejo de construção de uma mesquita quanto no desejo de se libertar o maior número de escravizados possível mediante compra.

Nesse meio, fermenta a revolta sutilmente, o que se manifesta no falar desses homens que têm, aliás, uma dicção interessantíssima.

Fiquemos, por ora, com a mesquita: ela encerra o desejo de transmitir ensinamentos não só religiosos aos escravizados. Ensinamentos podem ser subversivos. No caso de “viventes”, vistos como pouco mais do que objetos, o conhecimento é pólvora —quer os conjurados o admitam ou não.

A ação que se desenrola é didática, mas não como princípio: não se trata de mostrar às pessoas como agir, mas de buscar reconstituir o princípio da rebeldia —causas e consequências.

No mais, é preciso dizer que Pitanga faz um filme sobre o escravagismo e consegue fugir das muitas armadilhas que um trabalho dessa natureza sugere. Apenas como exemplo, é preciso notar as mulheres brancas da história. Elas não precisam bater, gritar, nada disso, para infundirem terror. A proprietária de terras, tanto quanto a freira, basta que olhem para as pessoas para sabermos exatamente como os negros de hoje sentem o olhar do homem branco.

Há na fazendeira, papel de Patrícia Pillar, um misto de desprezo e ódio pelo outro que dispensa demonstrações de força. Basta que leve o chicote: a força já está lá e equivale à dominação absoluta. Basta vê-la, com a ameaça implícita que marca seus olhares e gestos, para entendermos do que se trata.

Há na freira de Ítala Nandi o desejo de ensinar as belezas do cristianismo às jovens negras que pressupõe serem ignorantes por princípio —não conhecem o verdadeiro Deus, essas coisas—, e, no limite, desprezíveis. A representação das mulheres brancas é um dos pontos fortes do filme, mas não o único. Há as negras, que pouco falam, mas pensam.

A representação da revolta dos malês pelo filme tem muito a ver com o fundo histórico com que o Brasil convive até hoje, naturalmente, mas nisso o que mais afeta a realização, o que a motiva, é o esquecimento —desse episódio histórico, para começar.

Tem a ver também com a capacidade de evocar nosso passado angustiante e entrelaçá-lo ao presente que nos assombra, do qual é parte indissociável a naturalização da violência contra os negros —e pobres em geral— no país. É disso que trata “Malês”, no fim das contas.

Pitanga expõe a ação com a mesma clareza que maneja seus argumentos. Pesa ali a data, 1835, um momento que precede em anos as primeiras legislações que anunciavam a condenação final do escravismo. Não se tratava, pode-se acreditar, de uma revolta capaz de chegar à vitória, mas de um signo que dava a ver a situação insuportável que viviam. Talvez por isso mesmo ela tenha ficado tanto tempo ignorada: o Brasil sabe cantar suas belezas, mas sabe como poucos esconder suas vergonhas.

Num filme que vale pela produção bem ajustada, pela bela luz, pelo elenco muito eficiente e equilibrado —do qual impossível não notar o trabalho de Rodrigo dos Santos—, pela capacidade de Pitanga de esquivar-se das armadilhas do gênero, não há como assinalar a intromissão de uma longa cena amorosa entre Dassalu, papel de Rocco Pitanga, e Abayme, vivida por Samira Carvalho. Entende-se a provável intenção de notar o amor —carnal e não carnal— entre as personagens, mas a cena destoa do conjunto do filme e das aflições das personagens, sempre ameaçadas de serem separadas.

Malês

Avaliação Muito bom

Quando Estreia na qui. (2) nos cinemas

Classificação 16 anos

Elenco Camila Pitanga, Rocco Pitanga, Rodrigo dos Santos

Produção Brasil, 2025

Direção Antonio Pitanga