SÃO PAULO, SP (fOLHAPRESS) – Em 1998, o Brasil foi surpreendido por uma denúncia que virou manchete nacional: centenas de comprimidos sem efeito do anticoncepcional Microvlar, fabricado pelo laboratório Schering do Brasil, haviam sido colocados à venda em farmácias de todo o país.
O episódio ficou conhecido como o caso das pílulas de farinha e é um dos maiores escândalos da indústria farmacêutica brasileira, já que resultou em inúmeras gestações indesejadas e deixou marcas profundas na vida de centenas de mulheres.
Mais de duas décadas depois, a HBO resgata essa história na série documental “Pílula de Farinha: O Escândalo que Gerou Vidas”, que estreia nesta terça-feira (30) na HBO Max. A produção, dividida em três episódios, busca dar voz às vítimas e revisitar um processo que, apesar de sua gravidade, acabou rapidamente esquecido.
“É uma história que sempre me assolou, primeiro como repórter e depois como mulher”, afirma Jana Medeiros, diretora de conteúdo e cocriadora do projeto. Ela acompanhou o caso ainda no final dos anos 1990, quando trabalhava no Jornal do Brasil.
“O escândalo teve grande repercussão inicial, mas sumiu em meio à cobertura da Copa do Mundo e de outros assuntos. Nunca entendi por que ninguém voltou a contar essa história”, conta.
A ideia de retomar o caso surgiu em 2022, quando Jana uniu um grupo de pesquisa e iniciou uma busca de personagens que dessem corpo à narrativa. “Encontramos Paloma, que foi a primeira a compartilhar publicamente sua experiência. A história dela reunia todas as camadas de dor que queríamos retratar: física, psicológica e financeira. Foi ali que percebemos que havia material para construir uma série com fôlego narrativo”, conta.
A direção ficou a cargo de Cassia Dian, que trouxe sua experiência jornalística e também um olhar pessoal sobre a maternidade. “Eu mesma adiei ser mãe por muitos anos. Quando filmamos, meu filho tinha três anos, e isso me fez entender ainda mais a solidão e o peso enfrentados por essas mulheres. A sociedade dizia a elas: você está gerando uma vida, agradeça. Mas a realidade era bem diferente. Ter um filho exige preparo, dinheiro, apoio, condições, coisas que muitas não tinham”, explica.
A série evita romantizar a maternidade e expõe como, por trás da ideia de “milagre da vida”, havia um contexto de abandono e negligência. “É um true crime sem mortes, mas que gerou vidas. E mesmo assim, vidas foram marcadas por dor e um silêncio imposto durante décadas”, resume Cassia.
O documentário também aborda a maneira como a imprensa e a Justiça trataram o caso. Muitas vítimas foram responsabilizadas pelo ocorrido, enquanto o laboratório enfrentou apenas processos lentos e sem grandes consequências.
“Não faz sentido simplesmente reabrir um caso antigo sem relevância hoje. A importância está em mostrar que, se tivesse ocorrido nos Estados Unidos ou na Europa, essas mulheres teriam recebido indenizações e acolhimento. Aqui, foram invisibilizadas”, diz Jana.
A equipe, formada majoritariamente por mulheres, foi um dos diferenciais da produção. “Queríamos garantir que a abordagem fosse feita com sensibilidade. Isso foi essencial para conquistar a confiança das personagens, que abriram o livro de suas vidas para nós”, conta a diretora.
Cada episódio segue um arco narrativo: o primeiro apresenta o escândalo e o impacto imediato, o segundo mergulha na investigação e nas falhas institucionais, e o terceiro discute a maternidade e a jornada de superação das vítimas. “Desde o início pensamos em três capítulos, porque a história pedia essa estrutura”, explica Medeiros.
O lançamento acontece em um momento em que o uso de anticoncepcionais é tema de debate. Pesquisas recentes apontam que mulheres estão cada vez mais abandonando as pílulas por influência das redes sociais. “O impacto desse caso ainda ecoa. Vemos pessoas comentando: minha mãe também tomou, eu sou um filho da pílula de farinha. Esse retorno mostra que não se trata de uma história do passado, mas de algo vivo até hoje”, afirma Cassia.
Jana conta que a série não busca dar respostas definitivas, mas provocar reflexão. “Queremos que o espectador sinta indignação, mas também entenda a resiliência dessas mulheres”, diz. “É importante que reste uma pergunta incômoda: se um caso como esse acontecesse hoje, como seria tratado?”