SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O número de ações de inconstitucionalidade julgadas pelo TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) cresceu 66% nos últimos quatro anos, e especialistas apontam excesso de judicialização e tensão entre Poderes municipais.

O total de ADIs (ações diretas de inconstitucionalidade) estaduais apreciadas pela corte saltou de 576 em 2020 para 955 em 2024. Os dados constam do Ranking de Inconstitucionalidade, levantamento do Anuário da Justiça São Paulo, publicado pela Conjur.

Advogados e professores de direito consultados pela reportagem destacam a maior frequência com que o Judiciário paulista vem sendo acionado para decidir sobre temas das esferas legislativa e administrativa.

De 2020 a 2024, o Ministério Público manteve a dianteira como principal propositor das ações, com uma cifra que varia de 294 naquele período a 536 no ano passado. Prefeitos foram o segundo grupo que mais assinou a autoria das ações, com 243 em 2020 e 367 em 2024.

Nos municípios que encabeçam o ranking, por outro lado, a proporção de ações propostas por prefeitos em face das Câmaras Municipais se manteve maior do que o número de ações ajuizadas por outros órgãos nesses mesmos cinco anos.

Em 2024, por exemplo, os dados do TJ-SP mostram que das 955 ADIs julgadas, 56% foram propostas pelo Ministério Público, e 38%, pelo Executivo municipal. No total, as porcentagens equivalem respectivamente a 536 e 367 ações.

Considerando as três cidades com maior número de normas declaradas inconstitucionais no ano passado (Catanduva, São José do Rio Preto e Santo André), o cenário se inverte. A proporção de ações ajuizadas por prefeitos sobe para 83%, enquanto aquelas propostas pelo Ministério Público caem para 13% no ano passado.

Um caso representativo ocorreu em novembro, quando o TJ-SP revisou uma lei de Catanduva que obrigava a cidade a fornecer protetores solares aos servidores, decidindo a favor do prefeito. O colegiado julgou que o texto tratava da estrutura e das atribuições da administração e do regime jurídico dos servidores, de modo a invadir a competência do Executivo.

Em 2021, a proporção de ações ajuizadas por prefeitos era ainda maior. Naquele ano, 47% das 699 ADIs em todo o estado foram propostas por chefes do Executivo, e o Ministério Público foi autor em 46% desse mesmo total de casos.

Os municípios de Mauá, Andradina e São José do Rio Preto, que lideraram o ranking em 2021, apresentam um cenário diferente. A proporção de ações de controle de constitucionalidade estadual propostas pelas prefeituras dessas cidades equivale a 95% contra 2% de ADIs ajuizadas pelo Ministério Público.

O levantamento foi feito com base em dados disponibilizados pelo TJ-SP, considerando apenas as ações diretas de inconstitucionalidade julgadas no mérito: procedentes, procedentes em parte e improcedentes.

Essa classe de processo permite julgar a compatibilidade de normas estaduais ou municipais com as Constituições estaduais. Se julgada procedente, a corte derruba e declara o texto inconstitucional.

Gustavo Sampaio, professor de direito da UFF (Universidade Federal Fluminense), afirma que a atuação das prefeituras às vezes é devida, mas também pode indicar um estremecimento das relações entre Executivo e Legislativo no município, culminando em “judicialização da política”.

“Certamente há um manejo da representação de inconstitucionalidade para fins políticos. Muitas vezes, é justa a propositura das ADIs estaduais, mas muitas vezes é a extensão de uma disputa que sai do plano da política local. Isso ocorre geralmente em municípios em que o prefeito não tem a maioria na Câmara”, diz.

Esse fenômeno, diz Sampaio, não é restrito ao Brasil e deve ser compreendido à luz das evoluções do direito constitucional ao longo da história, mais especificamente, a alterações que a força das Constituições sofreu após a Segunda Guerra Mundial.

“O constitucionalismo escrito se concretiza com as revoluções liberais do fim do século 18, como as Revoluções Francesa e dos Estados Unidos. Foi o início de uma caminhada ascendente. Após a Segunda Guerra Mundial, as Constituições passam a conter princípios coordenadores. E é claro que o Judiciário, como intérprete final desse texto, que supera os três Poderes do Estado, se empodera”, afirma.

Conforme explica Pedro Serrano, professor de direito constitucional da PUC-SP, esse contexto de aumento geral no número de ações, somado à maior frequência dos prefeitos como autores das ADIs em alguns municípios, também pode indicar vícios na elaboração de normas pelos Legislativos municipais, motivados por um comportamento ativista dos Poderes.

“Nos últimos 15 anos, falou-se muito sobre ativismo judicial. Agora é hora de falar também em ativismo legislativo. Há uma crise institucional na divisão de funções do Estado e uma falta de limites na atuação dos Poderes, que têm invadido as competências uns dos outros. O aumento de ADIs estaduais pode ser um sintoma desse problema”, afirma.

Ex-procurador-geral do estado de São Paulo e professor de direito da USP, Elival Ramos atribui o aumento geral no número de julgamentos a uma perda de qualidade do processo legislativo e político.

Ele aponta que leis e normas podem ser aprovadas com vícios de inconstitucionalidade devido à falta de uma análise mais técnica e que vereadores por vezes podem até ignorar essas falhas por motivos políticos.

Ramos reconhece que a relação conturbada entre prefeito e Câmara pode estar vinculada ao aumento do número de julgamentos constitucionais em alguns municípios, mas minimiza. “É difícil cravar, porque seria preciso conhecer mais detalhes”, afirma. “Tenho a impressão de que são coisas variadas”.

Segundo o professor, para uma resposta mais conclusiva, seria necessário conhecer mais sobre quando a ação foi proposta, quem eram o prefeito e o presidente da Câmara e quais eram os partidos, assim como investigar o motivo da contestação no caso a caso.