SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O número de fuzis apreendidos em poder de criminosos na cidade de São Paulo é menor do que a produtividade divulgada pelo governo estadual na página da Secretaria da Segurança Pública, que usa de um truque para inflar as apreensões e assim engrossar a quantidade.
A explicação da metodologia é simples: um fuzil AK-47 encontrado por policiais militares do Batalhão de Trânsito no interior de um ônibus na madrugada de 23 de julho na avenida do Estado, no Canindé, região central, é colocado no mesmo bojo de um fuzil apreendido de um PM em serviço que matou um morador de rua desarmado em junho. Na prática, a arma do policial é devolvida após um certo tempo, retornado para o uso diário. Já a outra parte deveria ir para destruição após anuência da Justiça.
A olhos leigos foram 77 fuzis apreendidos na cidade entre janeiro a julho deste ano, de acordo com uma planilha sobre produtividade no site da SSP. No entanto, o número desaba para 21 se contabilizados apenas aqueles que, de fato, foram apreendidos durante operações diversas ou com suspeitos.
O número separado foi fornecido pela gestão Tarcísio de Feitas (Republicanos) após questionamento da Folha de S.Paulo.
“Para informações detalhadas sobre a quantidade de fuzis retirados diretamente das mãos de criminosos, é necessário solicitar os dados via SIC/Fala SP ou por meio da assessoria de imprensa da pasta. Apenas em 2025, foram apreendidos 21 fuzis com criminosos na cidade de São Paulo e 133 em todo o estado”, diz trecho da resposta.
O governo ainda acrescentou que as estatísticas divulgadas em seu portal seguem integralmente os critérios estabelecidos pela Resolução SSP nº 160/01. “No caso específico dos fuzis, os números englobam todos os armamentos dessa natureza apreendidos em ocorrências policiais, independentemente da origem”, acrescentou. A resolução em questão é a criação do Sistema Estadual de Coleta de Estatísticas Criminais em maio de 2001.
As informações disponíveis no site detalham apenas as ocorrências de 2024 e 2025. Questionada novamente, a SSP encaminhou nova nota em que confirmou ter modificado a forma de apresentação dos dados, como uma forma de aperfeiçoar a apresentação.
“A atual gestão da Secretaria da Segurança Pública aperfeiçoou a divulgação das estatísticas criminais com o objetivo de garantir maior transparência e auditabilidade dos dados divulgados. A iniciativa permite a análise do cenário criminal do estado com mais clareza e precisão, contribuindo diretamente para a elaboração de políticas públicas”.
Ainda conforme o governo, a mudança, ocorrida em janeiro de 2023, em que a coleta de dados passou a ser realizada diretamente no Sistema de Polícia Judiciária, utilizando boletins de ocorrência que já estão consolidados e auditados, obedece a resolução criada há mais de duas décadas.
Dos 77 fuzis na tabela, 50 constam como apreendidos pelo DHPP (Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa), responsável por investigar mortes cometidas por policiais militares. Em algumas ocorrências foram apreendidos mais de uma arma do tipo.
A reportagem teve conhecimento da junção dos dados ao buscar registros sobre fuzis, tipo de armamento usado na morte do ex-delegado-geral Ruy Ferraz Fontes, 64, ocorrida no último dia 15 em Praia Grande, na Baixada Santista, litoral de São Paulo. No assassinato foram usados dois tipos de fuzil calibres 556 e 7,62 mm, modelos mais comuns e apreendidos na cidade.
Entre os registros estavam diversas ocorrências envolvendo mortes cometidas por policias militares, que resultaram no confisco de armas, entre elas a do policial civil Rafael Moura da Silva, 38, na favela do Fogaréu, na zona sul, no dia 11 de julho.
Nesse caso em específico, em que Silva foi morto por um PM da Rota, três pistolas foram apreendidas para perícia. Todas elas de policiais. Um fuzil, que estava em posse de um policial civil que acompanhava Silva teve o mesmo destino. Ele não chegou a realizar disparo, mas a arma consta no item produtividade.
Bruno Langeani, consultor sênior do Instituto Sou da Paz, critica a metodologia adotada pela Secretaria da Segurança Pública, que atualmente tem Guilherme Derrite. “As estatísticas oficiais de armas apreendidas incluem armas usadas legalmente por policiais em ações de confronto, o que distorce os dados e induz a população ao erro. O correto seria contabilizar apenas armas ilegais retiradas de circulação e armas legais utilizadas em crimes.”
Segundo Langeani, no caso dos fuzis, que historicamente representam menos de 1% do total apreendido, a distorção é ainda mais grave. “Em alguns anos da gestão Derrite, o número de armas da polícia registradas como apreendidas chegou a dobrar os dados, inflando artificialmente os resultados. Isso precisa ser corrigido com urgência, sob pena de mascarar o real desafio do controle de armas no estado”, acrescentou.
“São Paulo não possui hoje uma estratégia estruturada para combater o mercado ilícito de armas. Não dispõe de nenhuma delegacia ou mesmo equipe investigativa dedicada a este tema. Até por isso, as apreensões vêm caindo há anos e seguem proporcionalmente baixas, considerando o tamanho da população e a presença do crime no estado”, afirma.
Outra ocorrência de repercussão que consta na planilha produtividade ocorreu na noite de 13 de junho na rua da Figueira, sob o viaduto 25 de Março, no Brás, região central. O morador de rua Jefferson de Souza, que estava desarmado e rendido, foi atingido por tiros de fuzil disparados à queima-roupa pelo tenente Alan Wallace dos Santos Moreira, 25. O policial disse na delegacia que o homem teria tentado tomar sua arma. No entanto, a câmera corporal usada pelo soldado Danilo Gehrinh, 23, desmentiu a versão. O equipamento preso ao uniforme de Moreira estava desligado no momento dos tiros.
Ambos foram presos, mas o fuzil FN Scar 556 usado por Moreira aparece no documento como se tivesse sido apreendido, aumentando a produtividade policial.