SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Pelas mãos de Anderson Figueiredo, 40, passam todos os dias diversas frutas em sua barraca em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. O que os clientes do local provavelmente não sabem é que sua habilidade manual não dá conta apenas de pesar e colocar as compras em sacolas.

A destreza de Figueiredo ajudou a tecer o crochê de peças desfiladas pelo designer brasileiro Gustavo Silvestre, em parceria com o franco-suíço Kevin Germanier, na Semana de Alta-Costura de Paris, em julho. O artesão aprendeu com Gustavo Silvestre diferentes técnicas manuais quando cumpria pena na Penitenciária Adriano Marrey, em Guarulhos, na Grande São Paulo.

O criativo é idealizador do Ponto Firme, projeto lançado em 2015 de capacitação de detentos e egressos do sistema prisional com a moda, focado no crochê. Na penitenciária, com os aprendizados passados por Silvestre em dinâmica de sala de aula, os cerca de 190 homens atendidos de 2015 a 2024 tiveram as penas reduzidas e geraram renda para suas famílias.

“No começo eu tinha preconceito, mas me deu outra perspectiva de vida”, conta Anderson Figueiredo. “Me mostrou que eu não precisava estar no crime para crescer”, diz o artesão, que hoje faz colaborações pontuais com Gustavo Silvestre e que escolheu não revelar à reportagem o motivo de sua pena.

O projeto não está mais na Adriano Marrey, mas funciona com um ateliê na República, no centro de São Paulo, no qual imigrantes e mulheres trans encaminhados pelo Ministério Público são capacitados e remunerados a partir da demanda que surge.

“A reincidência no crime é alta. Com o Ponto Firme, essas pessoas saíram de abrigos, alugaram casas e conquistaram independência financeira”, diz Gustavo, que destaca com orgulho que todo seu trabalho é feito com o apoio desses artesãos.

Apenas 24% dos presos trabalham no Brasil e 15% têm acesso a estudo, de acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen). Além disso, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (Depen), 21,2% dos egressos voltam ao crime em até um ano.

A experiência transformadora também é fomentada pelo trabalho da estilista Raquell Guimarães, criadora da marca Doisélles. Em 2005, quando foi aceita no programa Tex Brasil da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex), as vendas de suas peças artesanais superaram o esperado, mas faltava mão de obra qualificada.

A solução veio de uma experiência marcante. Aos 18 anos, perdida no metrô de São Paulo, foi ajudada por uma senhora que visitava o filho no Carandiru. “Quando ela falou ‘meu filho mora aqui’, isso humanizou aquelas pessoas para mim.” Anos depois, visitou o presídio antes da demolição.

Ali compreendeu que a falta de trabalho perpetuava a reincidência. Daí nasceu o projeto de levar tricô e crochê para o sistema prisional. Raquell se lembra bem, até hoje, do primeiro dia na oficina atrás das barras.

“O barulho da tranca é muito específico, é um portal de separação.” Com a prática, estabeleceu aos poucos as diretrizes: “Não vim trazer ponto de carochinha, mas uma possibilidade real de eles serem empregados”.

Em 18 anos, o projeto atendeu quase mil pessoas. Atualmente, Raquell trabalha com a metodologia Apac. A Associação de Proteção e Assistência aos Condenados é um método alternativo de execução penal reconhecido pela ONU como o que melhor ressocializa. Está em 43 cidades brasileiras e seleciona detentos para ocupar unidades humanizadas voltadas à educação e profissionalização.

A metodologia mudou a vida de Carlos Roberto, 38, que cumpriu pena por tráfico. Ele aprendeu marcenaria na Apac e hoje trabalha como autônomo. “O trabalho manual me ensinou que eu tinha valor como pessoa”, afirma.

A eficácia da ressocialização pela moda é confirmada pelos números da Passarela Alternativa. “Contemplamos 6.375 mulheres, movimentando mais de R$ 2,5 milhões. Das capacitadas, 45% conseguem emprego na área têxtil”, explica a head de comunicação Gabriela Ramos.

A organização desenvolveu uma metodologia própria: “80% técnica e teoria da costura, 20% desenvolvimento humano”. O acompanhamento pós-prisão inclui capacitação, atendimento psicológico, encaminhamentos para emprego e o programa “As Tops”, que gera renda por meio da venda de peças doadas.

Outra iniciativa é a PanoSocial, que desde 2012 empregou 51 pessoas nas funções de costureira, estampador etc. A contratação é CLT e a remuneração varia do piso médio ao máximo de cada categoria. A PanoSocial atua na produção sob demanda de vestuário, como camisetas, para empresas como Natura e Google.

A organização também tem uma linha própria e está aberta a contratação. Quem quiser se candidatar deve ter cumprido pena e preencher o formulário do Instituto Recomeçar, parceiro da PanoSocial. “Muitas empresas atuam nos presídios, o que é importante, mas quando as pessoas saem de lá, elas não são contratadas por essas mesmas companhias”, finaliza a sócia cofundadora e diretora comercial Natacha Lopes.