SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Estudo técnico feito a pedido de oito entidades do setor de energia desmonta pilares que sustentam a expansão da chamada MMGD (Micro e Minigeração Distribuída) e aponta indícios de irregularidades nesse modelo de produção, com a comercialização por empresas, o que é proibido por lei, e altos retornos.
Beneficiada por subsídio, a modalidade costuma ser apresentada como a emancipação energética das famílias, que podem reduzir a conta de luz produzindo energia limpa com seu próprio painel solar em casa ou na modalidade remota, em fazendas, pelo sistema de cooperativas ou condomínios.
O coordenador do trabalho, o engenheiro e pesquisador Marco Delgado, já atuou em empresas e entidades do setor e tem inúmeros artigos e pesquisas na área de energia. Ele adotou modelos estatísticos e acadêmicos para demonstrar que, embora a política pública tenha sido necessária para esse tipo de geração, o seu uso prolongado criou efeitos colaterais negativos, principalmente por causa do subsídio, avaliado como excessivo.
O estudo já foi apresentado ao Ministério da Fazenda. A expectativa é que possa chegar à Presidência da República.
O argumento dos defensores da GD é que o subsídio ajuda milhões de famílias a gerarem sua própria energia limpa, com contribuição ao sistema nacional, que ganha não apenas eletricidade, mas também redução de perdas elétricas na distribuição e postergação de investimentos na transmissão.
O registro oficial na Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) aponta a existência de 3,9 milhões de pontos de geração de MMGD no país. Quase a totalidade ocorre por painel solar.
Já são 43 GW (giga-watts) de capacidade instalada, algo como 3,5 usinas de Itaipu. A maior fatia, 31 GW, vem de placas no telhado. Os demais 12 GW são geração remota, em fazendas. Ao todo, 6,9 milhões de consumidores são beneficiados pelo subsídio.
Delgado segmentou essa floresta de dados. A GD remota, apesar de responder por uma parcela menor da geração, concentra a maior parte dos consumidores. Enquanto 2,7 milhões usam a energia no telhado, 4,2 milhões são atendidos remotamente. Traçando uma linha do tempo, o estudo identificou que essa alternativa é a que mais atrai consumidores.
Ao focar a análise na oferta remota, Delgado ainda contabilizou que um pequeno grupo de apenas 3% dos geradores abastecem 50% dos consumidores dessa modalidade ou seja, mais de 2 milhões, ordem de grandeza similar ao volume dos que têm placa no telhado.
“Está muito concentrado. Tem empresa com 15 mil vamos dizer assim condôminos. Isso é um condomínio legítimo?”, pergunta Delgado. “Há forte indício de que a geração remota é comercializada por empresas, o que a lei não permite.”
O que é permitido é o consumidor injetar a energia na rede e receber uma compensação na conta.
Fora das planilhas do estudo, na vida real, esse aumento de consumidores da GD remota ocorreu no momento em que inúmeras empresas passaram a vender assinatura de energia renovável, chamando, inclusive atenção da Aneel. Uma das vantagem anunciadas por quem oferece essa assinatura é um desconto na conta de luz da ordem de 15%. Ocorre que o retorno de quem coloca dinheiro na GD vai bem além.
O estudo fez a relação, ao longo dos anos, entre o preço dos equipamentos de GD e a TIR (Taxa Interna de Retorno) dos projetos, que nada mais é que a taxa de rentabilidade anual de um investimento, levando em consideração o valor do dinheiro no tempo.
Com base em dados públicos, Delgado identificou que, na média, a TIR da MMGD é de quase impressionantes 50% real, já descontada a inflação. Na modalidade remota, passa de 60%. A título de comparação, o indicador médio de concessões de serviços públicos, como saneamento, distribuição de gás e distribuição de energia é da ordem de 12%. Transmissão, um pouco menos, 11%.
Segundo o pesquisador, o fenômeno da alta rentabilidade é explicado justamente pela correlação entre a significativa redução de custos dos equipamentos fotovoltaicos e a manutenção do subsídio previsto na Lei 14.300/22. Basicamente, ele é um generoso desconto pelo uso do fio. Quando a distribuidora registra a instalação do painel e aplica o benefício, o valor passa a ser pago pelos demais consumidores que não têm painel.
A lei implementou uma cobrança progressiva sobre o valor do fio até 2028. Os sistemas instalados até 7 de janeiro de 2023 mantêm o subsídio total até 2045. A análise histórica do estudo aponta que a redução do subsídio deveria ter sido iniciada em 2019.
O “subsidiômetro” da Aneel indicou, em julho de 2025, que o subsídio concedido aos, então, 6,5 milhões de beneficiados da MMGD era a maior rubrica desse tipo de despesas. O gasto individual por beneficiado da MMGD era de R$ 210 ao mês quase sete vezes maior do que o subsídio individual dado aos 17,5 milhões de consumidores de baixa renda, que recebiam, em média, R$ 31 ao mês.
Há um problema maior. O ONS (Operador Nacional do Sistema) não tem controle sobre a MMGD. Não pode desligar a placa no telhado ou em uma fazenda. Quando energia solar dessa modalidade toma conta do sistema nacional durante o dia, resta ao ONS determinar o corte dos tipos de energia que pode controlar usinas hidrelétricas, térmicas flexíveis, grandes parques de solar e eólica.
A sistemática de corte de geração por excesso de oferta e falta de demanda é mais conhecida pelo termo em inglês curtailment. O corte escalou, espalhando prejuízos pelo setor. Quem é desligado, perde receita e não tem direito a ressarcimento.
“Temos dois problemas com a MMGD. Gente lucrando com a venda do que não pode vender, e aumento da oferta de energia que não tem controle”, diz o pesquisador.
“Por isso a proposta é acabar com o subsídio e fazer com que todo mundo dê a sua contribuição para o sistema, inclusive quem está gerando no seu telhado.”
Sim. Quem colocou energia no telhado perderia o subsídio e, provocando curtailment, participaria de um sistema de compensação, a ser discutido e implementado. Mudança nesse sentido foi aplicada em outros países. O trabalho traz como exemplo estados americanos, como a Califórnia (fez revisões em 2023), a Geórgia (2021) e Massachusetts (2017).
O estudo também mediu o impacto macroeconômico do subsídio, demonstrando que ele pressiona os reajustes das tarifas, com reflexos nos índices de preços da economia e das famílias brasileiras.
Em 2011, o peso médio da despesa com eletricidade no orçamento das famílias, medido no índice de inflação, era de 2,9% nos EUA e 3,1% no Brasil uma diferença de 0,2 ponto percentual. Em 2023, o peso havia caído para 2,4% nos EUA, e subido para 4,1 no Brasil, com a diferença aumentando para 1,7.
Segundo o trabalho, se as regras de transição da Lei 14.300/22 fossem antecipadas, mais de R$ 17 bilhões poderiam ser retirados da base tarifária, reduzindo em 5% o valor das tarifas e aliviando a pressão sobre índices de inflação.
Numa abordagem mais técnica, aplicou modelos estatísticos para ver o impacto da MMGD no sistema. Após 86 experimentos, não conseguiu comprovar que a proliferação dos painéis reduziu perdas elétricas na distribuição ou postergou investimentos na transmissão.
As oito entidades que encomendaram o estudo representam diferentes segmentos da cadeia. Abeeólica, do setor eólico, Abiape, dos investidores em autoprodução, Abradee, das distribuidoras e Abrage, do segmento de geração como um todo. Os consumidores são representados por Anace, Frente Nacional dos Consumidores de Energia e Abrace, que representa grandes consumidores.