BELÉM, PA (FOLHAPRESS) – O MPF (Ministério Público Federal) ingressou com uma ação civil pública contra três empresas —uma brasileira, uma espanhola e uma argentina— e contra a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) em razão de um contrato assinado para exploração de créditos de carbono, créditos de biodiversidade e outras soluções baseadas na natureza.

A ação foi finalizada na última quinta-feira (25) e protocolada na Justiça Federal em Tabatinga (AM), cidade que fica na fronteira com a Colômbia e uma das mais próximas da Terra Indígena Vale do Javari.

O procurador da República Guilherme Rodrigues Leal, que atua em Tabatinga, apontou na ação que termos do contrato representam um “risco gravíssimo de contato e de dizimação” de povos indígenas isolados, que escolhem se manter em isolamento voluntário, tanto em relação a grupos indígenas do território quanto em relação a não indígenas.

Em nota, a Univaja afirmou que soube em abril de 2022 do interesse de empresas na comercialização de créditos de carbono. “Até a presente data, não reconhecemos nem temos ciência de que qualquer contrato relacionado a tal atividade tenha prosperado formalmente em nossas comunidades, muito menos diretamente com a Univaja”, cita a nota.

O Vale do Javari é considerado o território com a maior população indígena em isolamento voluntário no mundo. É a segunda maior terra indígena do país, em extensão territorial, com 8,5 milhões de hectares —quase do tamanho de Portugal. Estão no território 19 grupos isolados e sete etnias, conforme dados do ISA (Instituto Socioambiental).

Na ação, a Procuradoria afirmou que um contrato foi assinado em 9 de dezembro de 2022 entre Univaja, a empresa brasileira Comtxae Serviços Educacionais, Cultura e Tecnologia (sediada no Rio e com capital social informado à Receita Federal de R$ 5.000), a Biotapass (espanhola) e a argentina Cooperativa de Trabajo Integral Biota.

Um documento elaborado em 2024 pela área técnica da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) apontou “irregularidades e ilegalidades” na parceria feita para exploração de créditos de carbono no Vale do Javari. A ação civil pública lista oito pontos entre os identificados pela Funai, que foi excluída das tratativas feitas, conforme o MPF.

Houve ingresso irregular no território e ausência de autorização da Funai; violação à Constituição Federal, uma vez que o contrato se refere à Univaja como “proprietária” do Vale do Javari; cláusula prevendo exclusividade na exploração de créditos, em todo o território, “restringindo a autonomia dos povos indígenas”; e limitações indevidas a usos tradicionais, conforme citado na ação.

A Comtxae disse que foi usada e enganada pelas empresas Biota e Biotapass. E que houve “transações obscuras” por parte de ex-diretores.

As empresas argentina e espanhola não responderam aos questionamentos da reportagem, enviados nos emails citados na ação civil pública.

Os outros pontos mencionados são ausência de consulta livre aos povos indígenas, risco aos isolados por prever a totalidade do território no negócio, cláusulas desfavoráveis à Univaja —que deve assumir riscos e custos de um fundo fiduciário— e duração de dez anos do contrato.

A Procuradoria em Tabatinga pede que a Justiça conceda uma decisão liminar, em caráter de urgência, para suspensão imediata de todos os efeitos do contrato e para paralisação de “registro, certificação e comercialização” dos serviços contratados.

No mérito, o MPF pede a anulação definitiva do contrato, a interrupção de qualquer iniciativa do tipo pela Univaja sem que haja a autorização da Funai e a condenação a um pagamento de uma indenização de R$ 10 milhões, a título de reparação por danos morais coletivos.

“Estamos averiguando o relato de que pessoas não identificadas, supostamente representando empresas envolvidas, teriam ingressado na terra indígena à época, sem cumprir as devidas formalidades legais”, disse a Univaja.

A entidade afirmou que “não assumiu qualquer compromisso ou contrato de venda de créditos de carbono e não reconhece a legalidade de qualquer menção ao seu nome nesses instrumentos”.

“Tratativas dessa magnitude exigem não apenas a solenidade da assinatura contratual, mas também a anuência de todos os povos e comunidades que compõem a Terra Indígena Vale do Javari –o que, de fato, não ocorreu”, cita a nota.

O contrato, anexado ao inquérito que resultou na ação civil pública, mostra a assinatura do vice-presidente da Univaja, Varney da Silva Kanamary, além de outros indígenas e de representantes das empresas.

Segundo a Univaja, houve um aceite inicial de dirigentes da entidade, mas uma rejeição posterior por parte das comunidades, sem que tenham sido gerados créditos de carbono ou de biodiversidade. Esses créditos são gerados a partir de desmatamento evitado da floresta e da preservação da biodiversidade e vendidos a empresas interessadas em compensar as próprias emissões de carbono.

A assinatura do contrato ocorreu pouco mais de seis meses após os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Phillips, em um rio que margeia a terra indígena. Eles foram mortos por pescadores ilegais em 5 de junho de 2022. Bruno atuava na vigilância indígena que monitora o território, serviço a cargo da Univaja.

Esse trabalho de vigilância —integrado por indígenas e indigenistas— é crucial para manter o território sem invasores e foi decisivo para a localização dos corpos de Bruno e Dom, dez dias após os crimes.