PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Teclados velhos de computador, celulares antigos, microchips descartados e aparelhos de DVD sem uso se amontoam na entrada do Museu de Arte do Rio Grande do Sul, o Margs. A grande pilha de lixo eletrônico transformada em obra de arte é um atestado do passado recente da humanidade e uma ameaça do presente contra o meio ambiente.
Para a artista Giselle Beiguelman, que faz do diálogo da tecnologia com a ecologia o ponto central de sua pesquisa, o descarte de produtos hi-tech não pode ser ignorado. “A questão ambiental é uma questão da cultura digital. Não tem como você trabalhar com inteligência artificial e não se questionar do impacto ambiental”, diz a artista, numa conversa no dia anterior à abertura de sua exposição em Porto Alegre.
Isso porque, ela argumenta, a cultura digital vem embalada num capitalismo voraz. “Nós fazemos os testes de tecnologias que se apagam. Quem lembra do ‘videolaser’, que era a salvação da conservação do audiovisual. Morreu, não tem mais. Ou o ‘pager’ e o celular tenho certeza que o seu não é o mesmo de cinco anos atrás.”
Estas discussões são abordadas em “Naturezas Desviantes”, exposição da artista em cartaz no Margs até novembro. A mostra reúne a instalação do lixo eletrônico inédita e feita em parceria com o artista Leo Caobelli e outras duas instalações de Beiguelman exibidas anteriormente, mas que aparecem no museu gaúcho em versão ampliada.
Logo na entrada, atrás do amontoado da tralha digital, um telão exibe um vídeo de três minutos feito por IA. O filme imagina a Amazônia tomada por descarte eletrônico, numa “tecnodistopia” sobre uma planta que nasce em meio a cabos e placas de computador. Beiguelman se diz fascinada pelos movimentos de câmera que a IA criou. “Mesmo com um superoperador de drone, isso não é possível.”
A artista começou a produzir o vídeo em agosto do ano passado e, quando ele foi concluído, acabou por também servir como um documento sobre as mudanças na IA. Isso pode ser notado na definição das imagens, que ficaram mais nítidas, conta a artista.
Assim como o vídeo, a exposição no Margs é um testemunho da evolução recente da IA, “da pré-história à pós-modernidade”, diz em tom de brincadeira o curador e organizador da mostra, Eder Chiodetto. Isto porque o processo que a artista usou para criar as imagens da série “Flora Mutandis”, em que acompanhava o computador gerar imagens de plantas inexistentes, hoje não é mais possível.
Chiodetto conta que, atualmente, a IA produz imagens da mesma forma como um laboratório fotográfico revela um filme, ou seja, o espectador só vê o resultado. Antes, era possível acompanhar o desenrolar e parar o processo no meio, escolhendo o resultado desejado.
A série das plantas inexistentes faz parte de “Botannica Tirannica”, instalação exibida originalmente no Museu Judaico de São Paulo, em 2022. Nesta obra, a artista também expõe plantas reais com nomes racistas, machistas, etaristas, antissemitas e imperialistas. Estão ali as mais conhecidas costela-de-adão e vitória-régia, mas também exemplares de judeu-errante, maria-sem-vergonha e beijo-turco.
São nomenclaturas preconceituosas, evidenciando o racismo e a violência de gênero incorporados na sociedade, diz Beiguelman. Sua forma de combater o pensamento retrógrado foi dar às plantas imaginárias nomes impronunciáveis e incompreensíveis, longe dos estigmas da cultura. “É o ponto zero de uma nova botânica. Uma forma de reflorestar o nosso jardim hipotético”, afirma Chiodetto, o curador.
A exposição se completa com uma terceira instalação, que expande um projeto exibido no ano passado no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo. Nele, Beiguelman lida com dois temas o primeiro é mostrar plantas proibidas ou tidas como nocivas ao longo dos séculos, a exemplo das folhas de absinto, matrizes de uma bebida alcoólica de mesmo nome associada à transgressão.
E o segundo é expor imagens de mulheres cientistas apagadas da história oficial ou das quais há poucos registros, como Maria Bandeira. Ela foi a primeira botânica do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, responsável por catalogar mais de 500 espécies de plantas e musgos, mas que acabou a vida isolada numa clausura para freiras.
Os retratos, todos de rostos idosos e altivos, foram também criados com IA a partir de comandos de Beiguelman. Mas houve muitos obstáculos. O primeiro foi a dificuldade da ferramenta de produzir imagens de pessoas idosas que olhassem para a frente segundo a artista, o resultado era sempre uma mulher corcunda. “Para a IA, a velhice é uma espécie de derrota para a vida.”
Outra barreira foi na hora de pedir à tecnologia que produzisse a imagem de uma mulher negra, Luzia Pinta, traficada de Angola para o Brasil por volta de 1700 e que comprou sua alforria depois de uma vida de escravidão. Pinta diagnosticava doenças pelo olfato e inventava remédios com plantas usadas em rituais de religiões de matriz africana.
“A IA trava com a informação de que ela foi escravizada e torturada, porque aparentemente você está rompendo as regras de uso. Fui ameaçada de expulsão, de suspensão [da ferramenta]. Essa mulher não era a Naomi Campbell nem uma influencer olhando para a câmera.”
GISELLE BEIGULEMAN – NATUREZAS DESVIANTES
– Quando Até 30 de novembro. De terça a domingo, das 10h às 19h
– Onde Museu de Arte do Rio Grande do Sul – praça da Alfândega, s/nº, Porto Alegre
– Preço Grátis
– Link: https://www.margs.rs.gov.br/midia/giselle-beiguelman-naturezas-desviantes/