SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nove viaturas e duas retroescavadeiras atravessam o portão de um loteamento no extremo sul da capital paulista. Numa das primeiras construções à vista, dois pedreiros reconhecem um agente da Polícia Militar Ambiental que participava da operação. Semanas antes, o militar havia avisado que eles estavam em área proibida.
Duas multas já tinham sido aplicadas no mesmo condomínio sem que isso inibisse o avanço da obra em Parelheiros, distrito banhado pela margem sul da represa Guarapiranga e cerca de 5 km a oeste do reservatório Billings.
Cinco imóveis de alvenaria desabitados e quatro barracos de madeira foram destruídos na ação em 1º de agosto, ampliando a lista de aproximadamente 4.400 demolições anotadas nos registros da Polícia Militar e da Guarda Civil Metropolitana nas suas atuações a serviço da Oida (Operação Integrada em Defesa das Águas) nos últimos cinco anos.
As milhares de intervenções do consórcio coordenado pela Secretaria Municipal de Mudanças Climáticas da capital, porém, não têm conseguido estancar o crescimento da mancha urbana no território com cerca de 3.000 nascentes que abastecem os reservatórios que, somados, têm capacidade de armazenar mais de 1 bilhão de litros.
De 2020 a 2024, a área urbanizada dentro das ARPMs (Áreas de Preservação e Recuperação de
Mananciais) da Billings e da Guarapiranga aumentou quase 7%, passando de 201 km² para 215 km², segundo mapeamento da Folha de S.Paulo com dados da plataforma MapBiomas. Os 14 km² a mais de área construída nesse território equivalem a quase o tamanho de São Caetano do Sul, menor município da região metropolitana da capital.
Se considerado todo o período em que existem dados sobre a ocupação, a área urbanizada dobrou. Passou de 98 km², em 1985, para os 215 km² registrados no ano passado. O aumento equivale a uma área maior do que Paris a capital da França tem 105 km².
Isso não significa que toda a urbanização nesta área é ilegal ou irregular, mas sim que ela segue crescendo em locais onde a preservação deveria ser priorizada.
Existem, porém, diferentes níveis de restrição à ocupação das ARPMs e o descumprimento da legislação pode ser considerado um crime ambiental. Na operação acompanhada pela reportagem, porém, ficaram evidentes algumas das dificuldades do Poder Público para coibir as infrações.
Ao menos 12 construções foram deixadas intactas porque tinham moradores ou indícios de ocupação permanente. Uma das casas já estava chegando ao terceiro pavimento. Imóveis habitados não podem ser desfeitos sem autorização judicial. Isso se torna um entrave porque as autoridades dificilmente conseguem encontrar os donos dos terrenos e os responsáveis pelos loteamentos clandestinos.
Funcionários da subprefeitura de Parelheiros, que atuam na fiscalização, culpam a burocracia pela inércia. Reclamam de ter dificuldade em acessar o cadastro federal com informações dos responsáveis pelos lotes.
Por estarem em áreas predominantemente rurais, propriedades no entorno das represas são registradas no Incra (Instituto Nacional da Colonização e Reforma Agrária).
O levantamento da Folha de S.Paulo tem como base levantamento sobre a característica do terreno, que é fotografado por satélite e classificado pelo Mapbiomas. Isso permitiu avaliar com maior precisão se, dentro das ARPMs, uma área ainda preserva vegetação, assumiu característica de pasto (rural) ou foi urbanizada.
Se por um lado a área urbana aumentou em 117 km² no perímetro de proteção e recuperação da Billings e da Guarapiranga, por outro, os terrenos com características rurais diminuíram 119 km² em quatro décadas. No período que os dados permitem analisar, a área com floresta se manteve estável passou de 644 km² para 654 km².
Os dados mostram que a perda de áreas rurais, e o avanço da urbanização, foi maior nas áreas onde a legislação ambiental é menos restritiva. São locais onde é permitido construir, desde que com as devidas compensações ambientais. A mancha urbana ali foi de 87 km² a 157 km² desde 1985.
Isso não quer dizer que não houve avanço de construções nas áreas onde a preservação deveria ser maior. Onde a lei impõe alta restrição ambiental, a área urbanizada cresceu de 4 km² a 16 km² no mesmo período.
Esses registros apontam para um fenômeno semelhante ao que acontece em outras regiões desflorestadas do país: primeiro ocorre a supressão da vegetação nativa para dar lugar a alguma atividade agropecuária e, quando os terrenos se tornam interessantes para a atividade imobiliária, há o avanço da urbanização, diz o geógrafo Julio Pedrassoli, coordenador de mapeamento do MapBiomas.
Se por um lado gestores públicos têm dificuldade em combater ocupações ilegais, por outro, a infraestrutura que permite a expansão urbana continua a ser instalada.
No loteamento em que a reportagem esteve, a menos de um quilômetro da margem da Billings, dezenas de postes de concreto já levam energia elétrica e iluminação à estrada de terra dentro da propriedade clandestina. Para retirá-los também é necessária autorização da Justiça e presença da concessionária do serviço.
O carro de uma empresa de telecomunicações, que fornece serviços de telefonia e internet a cabo, também estava no local quando os policiais chegaram. O veículo partiu quando o comboio se aproximou.
Numa área de morro, um balde de cimento fresco ao lado de uma parede com tijolos recém-construídos indicava que os operários estavam trabalhando minutos antes da chegada da polícia. Perto dali, um cabo de aço retorcido foi deixado na mata. Cabos metálicos e correntes, presos a tratores, são usados para derrubar árvores.
Nos fundos do terreno estavam amontoados troncos e galhos de árvores. Ao lado, um estábulo com três coxias para cavalos estava praticamente pronto sinal do poder aquisitivo do proprietário, destacou o comandante da operação, o coronel da reserva da PM Washington Pestana.
O secretário municipal de Mudanças Climáticas, Renato Nalini, reconhece a dificuldade de manter os terrenos protegidos contra novas ocupações. O mais comum é que, mesmo com as multas e os terrenos embargados, as construções avancem.
“Já temos desfeito a segunda construção no mesmo lugar” disse ele, demonstrando-se preocupado também com a poluição nas duas represas. “O esgoto in natura jogado ali faz com que a água tenha coliforme fecal, tenha cocaína expelida na urina. O tratamento [sanitário] não elimina resíduos de fármaco, então nós estamos tomando antibiótico, anticoagulante, antidepressivo, anticoncepcional, antitudo, microplástico que já está até nas artérias e no cérebro, tudo isso está lá.”