PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Aos oito anos de idade, Anacláudia Rossbach viveu uma experiência que marcou sua visão sobre a fragilidade dos centros urbanos. No final dos anos 1970, uma das maiores cheias da história do rio Paraguai cobriu completamente Porto Murtinho (MS), onde ela morava. O pai de Anacláudia, militar, coordenou a evacuação da cidade.

“Fiquei impressionada de entrar de barco na minha casa, para buscar coisas”, lembrou à Folha de S.Paulo. “Eu era privilegiada, morava em vila militar, mas estudava em escola pública, com pessoas de todos os segmentos, e vi como elas perderam bens materiais, ficaram em acampamentos improvisados. Me dei conta de como a gente está vulnerável à natureza.”

A menina curiosa tornou-se economista. Culminando uma carreira dedicada aos problemas habitacionais, há um ano assumiu como diretora-executiva da ONU-Habitat, o Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos. Sua missão é preparar as cidades do mundo inteiro para desafios como as mudanças climáticas.

Rossbach estará na COP30, em novembro, em Belém. Nela, será apresentado o novo Plano Estratégico da ONU-Habitat até 2029. O documento consolida propostas de soluções para os graves problemas habitacionais do planeta. Um relatório recente da entidade mostrou que 2,8 bilhões de pessoas não têm moradia adequada, sendo que 1,1 bilhão vivem em favelas.

“A COP no Brasil é muito estratégica”, explica. “As cidades vão ter um papel cada vez mais central nas discussões climáticas, simplesmente porque vamos ter mais pessoas morando em áreas urbanas. Hoje nós temos mais da metade, em 2050 vamos ter 70%. Isso significa mais de 1 bilhão de pessoas chegando às cidades.”

O grosso desse crescimento, segundo ela, será na África e no Sudeste Asiático. Trabalhando em Nairóbi, onde fica a ONU-Habitat —apenas duas agências das Nações Unidas são sediadas no chamado Sul Global—, Rossbach testemunha em primeira mão as consequências desse êxodo rural.

É um processo que lembra o Brasil de décadas atrás, que não estava preparado para os recém-chegados. Não foram reservados espaços e não foram pensados mecanismos financeiros que permitissem adquirir moradias.

Hoje, porém, ela afirma, o país é exemplo na questão do acesso à propriedade, com programas como o Minha Casa Minha Vida. Como consultora do Banco Mundial, durante mais de uma década Rossbach participou do desenho de algumas dessas políticas.

A melhoria do acesso à habitação, segundo o plano estratégico, teria impacto positivo na erradicação da pobreza, na resposta aos desafios ambientais e climáticos e na preparação das cidades para reagir a crises humanitárias. A ONU-Habitat vai realizar em maio do ano que vem o Fórum Urbano Mundial, em Baku, no Azerbaijão, maior conferência mundial sobre urbanização sustentável.

Para que a ação da ONU-Habitat seja efetiva, Rossbach considera fundamental dispor de dados melhores. É uma visão que ela traz de seu período trabalhando na Prefeitura de São Paulo, no início dos anos 2000, quando foi realizado um minucioso mapeamento das favelas paulistanas, contando pacientemente telhado por telhado em fotografias aéreas.

Sendo uma mulher à frente de uma agência da ONU, Rossbach tem consciência do impacto do gênero sobre os problemas urbanos. “As cidades não foram planejadas por mulheres, para mulheres e com mulheres. Isso precisa mudar”, disse em Paris, no início do mês, em aula inaugural para os alunos da Sciences Po, uma das principais faculdades de ciência política do mundo.

Mulheres, ela explica, “não usam a cidade da mesma forma que os homens”. Problemas específicos delas, como conciliar trabalho e tarefas domésticas, precisam ser levados em conta no planejamento urbano —por exemplo, nos transportes e na iluminação pública.

“Como mulher, não me sinto confortável em andar em cidades da América Latina à noite, sozinha. Mulheres em assentamentos precários estão numa situação ainda mais vulnerável.”

Por isso, mulheres precisam estar “com a caneta na mão”, diz ela, participando das decisões. A economista cita como exemplo as “manzanas del cuidado” (quadras do cuidado) de Bogotá: espaços espalhados pela capital colombiana onde as mulheres que exercem trabalho doméstico podem estudar, exercitar-se e até lavar a roupa da família, tudo de graça.

Bogotá adotou o conceito de proximidade —um planejamento urbano que ofereça todos os serviços essenciais a distâncias pequenas. É uma ideia que ficou famosa com o termo “cidade de 15 minutos”, cunhado pelo urbanista franco-colombiano Carlos Moreno.

Mas Rossbach ressalva que não é preciso ficar preso à “camisa de força dos 15 minutos”. “O importante é trabalhar o conceito de proximidade de uma maneira ampla. Pode ser a pé ou de bicicleta, mas pode ser de ônibus. Não no sentido de isolar as pessoas, mas de oferecer um rol de serviços”, conclui.