SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Toda a terra vegetal que cobre, como um manto, a superfície da terra, passou muitas vezes por dentro do corpo de uma minhoca”. A afirmação que o naturalista britânico Charles Darwin (1809-1882) entrega na reta final de sua obra derradeira dá a dimensão da importância destes pequenos seres para o funcionamento do planeta, que fazem a preparação do solo desde muito antes de um ser humano sonhar em inventar o arado.

Apesar da aparência pouco atraente de seu título, “A Formação da Terra Vegetal pela Ação das Minhocas, com Observação sobre seus Hábitos” é um achado sobretudo pela singeleza e astúcia com que uma narrativa a princípio científica se transforma em literatura. Darwin morreu seis meses depois da publicação do original do texto, que agora é lançado no Brasil em edição da Fósforo, com ótima tradução de Sofia Nestrovski.

Não é preciso ser biólogo nem manter caixas de compostagem no quintal para se beneficiar do tema, à primeira vista prosaico (o próprio autor, aliás, reconhece que há uma aparência de insignificância na terra vegetal e nas minhocas, mas relembra que, na ciência, a máxima “a lei não se ocupa de ninharias” não se aplica). É que Darwin, além de fundamental à investigação do mundo, também é um prosador de mão cheia.

Sua linguagem é uma mistura de diários com ensaios e divulgação científica, e entrega fluidez e despretensão, fazendo das minhocas uma matéria notável. No posfácio, Reinaldo José Lopes, colunista de ciência na Folha de S.Paulo, afirma que “A Formação da Terra Vegetal…” é tão representativo da escrita e do pensamento de Darwin quanto “A Origem das Espécies”, uma bíblia da biologia evolutiva.

Se para sua obra mais reverenciada Darwin usou principalmente resultados da expedição com o navio Beagle, na década de 1830, para seu último texto o naturalista reduziu sensivelmente as dimensões do campo de estudo. Durante muitos meses, manteve em seu escritório vasos cheios de terra, e neles dispôs um certo número de minhocas.

A ideia era entender até que ponto elas agem conscientemente, quanta capacidade mental exibem ter, e sobretudo ir além do que chamou de “raridade de observações” feitas até então sobre estes bichos que, como ele diz, estão posicionados em um patamar baixo na escala da organização.

Darwin conta, por exemplo, que as minhocas não têm órgãos respiratórios e, por isso, respiram pela pele. Relata experimentos com luz para testar sua sensibilidade, já que são desprovidas de olhos, e descobre que elas são afetadas pela intensidade e pela duração da luminosidade oferecida. Segundo Darwin, é também por meio da pele que a luz estimula os gânglios cerebrais destes animais.

Em nome da ciência, um dos maiores naturalistas da história do mundo tocou piano para minhocas. Dispôs os vasos experimentais numa mesa junto às teclas do instrumento e as apertou com toda a força, mas as bichinhas se mostraram inabaláveis. A coisa mudou de figura, no entanto, quando os vasos migraram para cima do piano e o dó grave foi pressionado —todas recuaram para dentro das galerias.

Para testar o olfato das minhocas, Darwin bafejou sobre elas tabaco, perfume e ácido, e enterrou fundo nos vasos folhas de repolho e cebola. Ainda no campo dos alimentos, descobriu as preferências dos animais, onívoros por natureza. Prendeu pedaços de carne crua e assada na superfície dos vasos e anotou: “Era possível observar as minhocas dando puxões na carne e abocanhando-a”. Também entendeu que elas são canibais, porque viu duas metades de uma minhoca morta serem arrastadas para dentro dos canais e devoradas na sequência.

O instinto que mais surpreendeu Darwin foi o de tapar as entradas das galerias com diversos objetos, coisa que mesmo os indivíduos muito jovens já fazem. As folhas são sempre a primeira escolha, mas também servem pecíolos de diversos tipos, pedúnculos florais, gravetos em decomposição, pedaços de papel, penas, tufos de lã e fios de crina de cavalo. Se não conseguem nada disso, as minhocas apelam para as pedras.

Elas também têm noção do formato dos objetos, o que permite que julguem qual a melhor maneira de arrastá-los —neste ponto do livro, é comovente a análise detalhada do pesquisador sobre as partes das folhas nas quais as minhocas preferem se segurar até conseguir puxá-las de um lado para o outro.

Valioso, “A Formação da Terra Vegetal pela Ação das Minhocas…” é um mergulho profundo no comportamento e na cognição de seres cujos efeitos no planeta são sentidos a toda hora, mas raramente reconhecidos. Para Darwin, é questionável se haveria animais com papel tão importante quanto o das minhocas na natureza —os corais, ele diz, poderiam até chegar perto caso não vivessem quase que totalmente restritos às zonas tropicais.