SANTIAGO, CHILE (FOLHAPRESS) – Depois de “Cem Anos de Solidão”, “Como Água para Chocolate” e “Pedro Páramo”, mais um clássico do realismo fantástico latino-americano chegará ao streaming. É a vez de “A Casa dos Espíritos”, romance da escritora chilena Isabel Allende que acompanha quatro gerações de mulheres de uma família —Nívea, Clara, Blanca e Alba— num país fictício atravessado por conflitos políticos.

A série do Prime Video, cuja produção tinha sido anunciada em meados do ano passado, teve o seu primeiro teaser divulgado num evento privado em Santiago, no dia 23.

Além de executivos da plataforma e do trio criativo à frente da adaptação, a exibição também contou com a presença da própria Allende, de volta ao Chile após seis anos sem visitar o país. Ela participaria no dia seguinte de um evento de lançamento de sua obra mais recente, “Meu Nome é Emilia del Valle”, publicado no Brasil pela Bertrand.

À plateia, a escritora de 83 anos contou que só havia assistido a três do total de oito episódios da série. Questionada sobre suas impressões da obra até ali, ela afirmou que, diferente da adaptação original para o cinema, a nova versão parecia ter “o sabor chileno” que ela acredita ter dado ao romance quando o escreveu, exilada após o golpe militar que tirou seu tio Salvador Allende do poder.

“Naquela época, qualquer filme que quisesse ter valor comercial tinha que ser em inglês e ter estrelas de cinema”, disse sobre o filme de 1993, protagonizado por Meryl Streep, Jeremy Irons, Glenn Close, Winona Ryder e Antonio Banderas. “Agora, quando vi a série, vi o que ele sempre deveria ter sido. Até os figurantes se parecem conosco. Ela tem o espírito do país e de tudo o que aconteceu com ele.”

De fato, como outras das adaptações recentes da literatura latino-americana para o streaming —uma lista que abrange ainda “O Eternauta”, da Netflix—, esta também foi rodada inteiramente no país natal de sua autora.

E embora seu elenco não seja 100% composto por locais, incluindo, além de atores chilenos, colombianos, argentinos, mexicanos e espanhóis, isso também respeitou uma decisão criativa da escritora, que situa a trama em um país remoto da América do Sul, como explicou uma das criadoras da série, Fernanda Urrejola, durante o evento.

Mais do que isso, Allende deu a entender que talvez o maior problema da adaptação original tenha sido a dificuldade de Hollywood em lidar com o realismo fantástico, cuja lógica seria em certa medida inacessível para quem não é da região.

“Me perguntam com frequência se acredito ou vivo conforme o realismo mágico. Não vejo fantasmas, mas acredito que a vida é muito misteriosa, e que nela há coisas que não se explicam. E isso se repete nos meus livros, não como um truque literário, mas devido à forma como vejo a vida”, afirmou a escritora, fazendo a ressalva de que seu livro não é expoente direto do movimento formado inteiramente “por homens, metade deles com bigode”, mas sim surgiu em sua esteira.

À reportagem, Francisca Alegría e Andrés Wood, que assinam a produção ao lado de Urrejola, disseram acreditar que o próprio apelo do realismo mágico motiva a nova onda de adaptações. Isso, é claro, aliado à globalização do audiovisual promovida pelo streaming, que se de um lado profissionalizou equipes em regiões como a América Latina, por outro permitiu que o público se acostumasse a produções faladas em outros idiomas que não o inglês.

Se as falas dos convidados durante o evento enfatizaram o aspecto sobrenatural da série, permanecia em aberto como a adaptação lidará com a parte do realismo do gênero a que ela se filia. “A Casa dos Espíritos” é, afinal, uma alegoria da violenta ditadura de Augusto Pinochet no Chile —e também dos demais regimes militares que tomaram a região a partir da segunda metade do século 20.

Mais do que isso, os traumas no centro do romance são frequentemente lidos como oriundos de um embate entre masculino e feminino. Não é à toa, afirmou Allende durante a exibição, que a função de “coluna vertebral” da saga cabe ao patriarca da família, Esteban Trueba, “o único personagem que aparece do princípio ao fim”. Ele representa “o status quo, a pátria, o poder, a autoridade”, afirmou ela. “Todas as outras vozes são marginais.”

À Folha, os criadores da série disseram que essa leitura da história estará mais presente nesta adaptação do que na anterior. “Sinto que a grande diferença é que o filme é contado da perspectiva de Trueba, enquanto a série o faz pela visão de Alba e das outras mulheres”, afirmou Wood, diretor de “Machuca” e único homem do trio.

Ele e suas parceiras na adaptação acrescentaram que o próprio fato de tratar-se de uma série, e não de um filme, contribuiu para isso. Afinal, cada uma das personagens femininas da saga desempenha um certo papel no objetivo geral de curar os traumas do clã, e exige para si um certo tempo de tela. O longa original saltava uma geração da família, fundindo as personagens de Blanca e Alba numa só figura.

A série deve lidar com ainda outro desafio. Seu lançamento, marcado para o ano que vem, provavelmente se dará numa América Latina tão polarizada quanto a atual, em que governos de ultradireita não têm vergonha de homenagear ditaduras do passado —no próprio Chile, que realiza eleições presidenciais em novembro deste ano, o candidato ultraconservador José Antonio Kast já fez vários comentários enaltecendo o regime de Pinochet.

Questionados sobre como esperam que a série impacte a região em um momento como este, os criadores disseram que não têm expectativas de que uma série isolada seja capaz de mudar os rumos da política. Mas, acrescentaram, ela pode ser uma oportunidade de lembrar o que aconteceu no passado da região, com todos os seus matizes.

“Assim como a série tem a magia e a ilusão do romance original, ela também traz uma crueza em relação aos anos 1970 que para nós era importante”, disse Alegría. “Nesse sentido, nos atrevemos a ser fiéis ao romance e mostrar a crueldade de certos eventos da ditadura sem fazer vista grossa sobre eles. Como que dizendo: ‘aqui houve coisas terríveis, e tomara que elas não voltem a ocorrer’.”

A jornalista viajou a convite do Amazon Prime Video