SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – No auge da Era dos Dinossauros, no deserto que existia onde hoje é o interior de São Paulo, um réptil voador apoiou suas patas numa duna para ganhar os ares. Essa decolagem, bem como a anatomia das patas da frente e de trás do bicho, ficaram preservadas em duas pegadas agora identificadas por paleontólogos brasileiros, as primeiras de seu tipo no país.

Ainda não é possível determinar a espécie responsável por deixar as marcas na areia, mas o tamanho das patas (com pouco menos do que 20 cm de comprimento) indicam um pterossauro de porte imponente para os padrões dos animais alados atuais, com uns 2,5 metros de uma ponta à outra das asas. Para a época em que o bicho viveu, porém —entre 140 milhões e 125 milhões de anos atrás—, trata-se de um exemplar modesto, já que alguns de seus parentes sul-americanos podiam ultrapassar os 8 m de envergadura.

A descoberta é tema de um artigo recente na revista especializada Anais da Academia Brasileira de Ciências. Assinam o trabalho os paleontólogos Mauro Lacerda, Marcelo Adorna Fernandes e Giuseppe Leonardi —os dois primeiros são pesquisadores da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), enquanto o italiano Leonardi, um dos pioneiros do estudo de pegadas fósseis no Brasil, é padre, tendo a paleontologia como “lado B” de sua carreira.

As pegadas do réptil alado foram preservadas num tipo de arenito comumente extraído nas pedreiras de Araraquara, cidade vizinha de São Carlos, onde trabalham os paleontólogos. O calçamento tradicional das ruas da região ainda hoje traz marcas de diversas espécies do passado remoto.

“Inclusive, recentemente vi numa praça de Araraquara coisas muito parecidas com as pegadas do nosso artigo”, conta Lacerda, que é o primeiro autor do artigo e pesquisador de pós-doutorado na UFSCar.

As pegadas eram conhecidas desde 2004, época em que Fernandes estava fazendo seu doutorado e estudava trilhas deixadas por diversos animais no chamado paleodeserto Botucatu, a ampla região árida que existia ali no começo do período Cretáceo.

“Na época, eu cheguei a classificá-las como produzidas por um dinossauro indeterminado, ou então achei que poderiam ser de aves, apesar de o tamanho ser bem maior do que a gente esperaria para uma ave dessa época”, lembra Fernandes.

De lá para cá, as lajes de pedra com as marcas ficaram armazenadas na UFSCar e, graças a uma análise mais detida, à modelagem em 3D e à colaboração com Leonardi, os pesquisadores concluíram que havia diversas evidências apontando para um pterossauro como o responsável pelas pegadas.

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É possível concluir isso a partir de detalhes presentes tanto na pata da frente quanto na de trás, ambas com suas impressões preservadas na área. Não há certeza absoluta de que se trate de patas de um único indivíduo, mas o tamanho muito semelhante das pegadas sugere isso. A forma das patas, porém, é muito diferente na frente e atrás, conforme é esperado para os pterossauros.

Acontece que, nos membros dianteiros, esses animais eram digitígrados, ou seja, apoiavam-se nos dedos para caminhar, tal como os cães e gatos de hoje. Nas patas traseiras, porém, os bichos eram plantígrados, apoiando-se em toda a sola do pé.

Segundo Lacerda, essa diferença-chave entre patas dianteiras e traseiras está ligada às modificações nos membros da frente que transformaram os ancestrais dos pterossauros em animais alados. Isso porque, diferentemente do que vemos nos morcegos, a membrana das asas dos pterossauros tinha como “armação” apenas um dos dedos, com formato e comprimento muito modificados. Assim, apoiar-se na planta das patas da frente se tornou impossível.

Em outras pegadas de animais do grupo, achadas em países como Argentina e Coreia do Sul, é comum que apenas os membros dianteiros apareçam, o que sugere, para os paleontólogos, que o grosso do apoio do animal recaísse sobre as patas da frente.

No caso das marcas deixadas pelo pterossauro brasileiro, isso também aparece: a pegada dianteira é mais marcada que a de trás, e os pesquisadores inferem que o bicho estava na encosta da duna, tomando impulso para voar. “Num substrato arenoso como esse, ele provavelmente não conseguia se locomover com muita facilidade, andando talvez como um morcego”, diz Fernandes.

As pegadas já integram o acervo paleontológico exposto no Museu da Ciência de São Carlos Professor Mauro Tolentino, perto da Câmara Municipal da cidade, junto modelos das duas patas feitos com uma impressora 3D e vários outros exemplos da passagem da fauna da Era dos Dinossauros na região —besouros, um pequeno mamífero, dinos herbívoros e carnívoros. Segundo os pesquisadores, ainda há diversas outras marcas intrigantes a serem decifradas nas lajes de pedra da região.