SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1973, quando ainda eram rapazes e moravam em João Pessoa, os irmãos artistas Aprigio e Frederico Fonseca —nascidos no Recife, criados na vizinha Olinda— viram na fachada de uma oficina mecânica um letreiro colorido que dizia: “Aqui/ tán/ bem/ amor/ tece/ dores”.

Encantaram-se pela “plasticidade do desenho das letras” e pela “adaptação do anúncio ao exíguo espaço horizontal, tornando-o vertical, o que fez ampliar o sentido do texto”. A propaganda artesanal de uma peça para automóveis se transmutava involuntariamente num paliativo contra a melancolia.

Foi como uma epifania. Sem que ainda soubessem, começava ali um mergulho na sintaxe visual produzida pelos iletrados ou pouco letrados, pesquisa batizada por eles de “Falação dos Mudos”, projeto que perdura até hoje.

Em 2023, quando a série completou 50 anos, os irmãos Fonseca fizeram um livro-inventário sobre o trabalho, impresso no ano passado, em edição dos autores, e que será lançado, neste sábado (27), em São Paulo.

A revelação ocorrida na oficina em João Pessoa foi sendo elaborada até que, no começo dos anos 1980, já de volta a Olinda, os artistas passaram a pintar placas oferecendo serviços inexistentes e fixá-las em muros ou fachadas de residências e comércios aleatórios, como um anúncio de peixes e crustáceos numa loja de lingerie.

“Essas placas normalmente eram retiradas pelos moradores, lojistas ou transeuntes”, lembra a dupla na apresentação do volume. Muitas se perdiam, mas algumas eram recuperadas e, gastas e avariadas, exibiam a evolução do trabalho, a obra em movimento.

Segundo o texto, a pesquisa de campo “revelou uma repetição de formas interessantíssimas do desenho de algumas letras, como o ‘S’ e o ‘N’ invertidos, pois assim são mais fáceis de registrar, visto que escrevemos normalmente de cima para baixo e da esquerda para a direita”.

“Além disso, a substituição prevalente do ‘E’ pelo ‘I’ , do ‘O’ pelo ‘U’, do ‘M’ pelo ‘N’ e do ‘S’ pelo ‘Ç’. Em resumo, a pesquisa demonstrou a aproximação entre o ato de falar e o de escrever.”

A educação técnica-estética dos irmãos artistas faz com que se complementem no projeto e na carreira: ambos possuem formação em pintura, mas Aprigio dialoga mais com o design e com suportes como a fotografia —é graduado em comunicação visual pela Universidade Federal de Pernambuco, com mestrado em artes visuais pela Universidade de São Paulo—, enquanto Frederico sempre se voltou mais ao desenho e apresenta maior apuro gráfico.

O projeto ganhou impulso em 2000, quando, para homenagear os 80 anos do poeta João Cabral de Melo Neto, os artistas transcreveram para o universo das “falações” o poema “Uma Faca Só Lâmina”, um dos pontos altos da estética da precisão cabralina. As placas pintadas com os versos foram espalhadas pelas ruas de Olinda e Recife.

No livro lançado neste sábado em São Paulo, há um texto escrito pelo jornalista Sérgio Rodrigues, colunista da Folha, a convite dos irmãos Fonseca sobre a série dedicada ao poema.

No artigo, Rodrigues define a ortografia como “a casca da língua” ou “o leito de um rio que corre forte e denso lá embaixo, mas que, por ser a parte que se deixa ver, os ingênuos acreditam ser o rio inteiro”.

O autor de “Viva a Língua Brasileira” lembra que “toda língua começa oral, sem nenhuma representação gráfica em seu nascedouro” e defende a necessidade de se reconhecer “que a alma de uma língua não mora na escrita”.

Por fim, Rodrigues observa que, com a versão pictórica de “Uma Faca Só Lâmina”, os irmãos artistas “abrem na superfície da língua umas frestas por onde vislumbramos sua alma. O espetáculo é inesquecível, ao mesmo tempo diferente e estranhamente familiar”.

Produzidas entre 1973 e 2022, as obras catalogadas no livro se valem de variados suportes e técnicas, com prevalência de pinturas —sobre tecido, madeira, metal etc.—, mas também fotografia, escultura e instalação e com técnicas mistas sobre materiais inusitados, como pele para alfaia —um tambor de maracatu.

O projeto compreende muito mais obras do que as selecionadas para o volume. Uma delas integra a mostra “Fullgás”, que esteve no CCBB de São Paulo e de outras capitais, reunindo a produção dos anos 1980 de artistas de diversas regiões.

No lançamento na capital paulista, não haverá exposição dos trabalhos. Mas o próximo evento programado para o livro —em janeiro próximo, no Mamam, o Museu de Arte Moderna Aloisio Magalhães, no Recife— será conjugado com uma mostra das obras da série.

LANÇAMENTO DO LIVRO FALAÇÃO DOS MUDOS, SOBRE A SÉRIE ARTÍSTICA HOMÔNIMA

– Quando sábado, 27/9, das 15h às 18h

– Onde Livraria da Vila, rua Fradique Coutinho, 915, Vila Madalena

– Preço R$ 100

– Autoria Aprigio Fonseca e Frederico Fonseca

– Editora Edição dos autores