MOSCOU, RÚSSIA (FOLHAPRESS) – O diretor-geral da agência da ONU para energia nuclear, o argentino Rafael Grossi, disse nesta sexta-feira (26) que a eventual saída do Irã do acordo com o órgão para prevenir a construção da bomba atômica levará o Oriente Médio “a um novo pico de tensão”. Em outras palavras, risco de guerra entre o Estado judeu e Israel, talvez com participação americana.

“Se eles escolherem romper, o Irã estará fora da lei internacional. Será um momento delicado”, disse ele ao responder questionamento da Folha de S.Paulo durante entrevista coletiva em Moscou, onde ele participa da Semana Atômica Mundial, evento da estatal nuclear russa Rosatom.

Grossi comentava a ameaça refeita pelo país persa mais cedo, quando o chanceler Abbas Araghchi disse em Dubai que romperia o acordo em caso de novas sanções internacionais contra o Irã ou ataques militares semelhantes aos empreendidos por Israel e pelos Estados Unidos em junho passado.

As sanções são defendidas por países europeus que ainda apoiam o acordo nuclear de 2015. Na semana passada, o Conselho de Segurança da ONU aprovou a reimposição das punições, e a janela para negociação acaba no fim de semana.

O acordo em si, que trocava o fim de sanções pelo abandono da busca pela bomba, deixou de ser efetivo na prática quando o presidente Donald Trump o deixou ainda em seu primeiro mandato, em 2018. Agora, os cossignatários Reino Unido, Alemanha e França pressionam o Irã.

De lá para cá, como o diretor-geral havia dito à reportagem no ano passado, o Irã “ultrapassou todas as linhas vermelhas” rumo à bomba, acumulando urânio enriquecido a níveis próximos do necessário para montar uma arma.

Ao fim, Israel atacou durante 12 dias a teocracia, mirando suprimir suas capacidade ofensivas e defensivas, além de alvos do seu programa nuclear. “Isso era impensável”, disse Grossi. “Até os EUA participaram!”.

Teerã diz que seu programa segue intacto, e em setembro assinou um acordo com a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) para retomar as inspeções de seu programa, embora a relação esteja esgarçada com o órgão.

Grossi chegou a ser acusado diretamente pelo governo de favorecer o ataque ao publicar, um dia antes da ação israelense, relatório afirmando que o Irã estava em descumprimento de suas obrigações assinadas em 2015.

Questionado se o fato de o mundo ter potências atômicas envolvidas em conflitos, como Moscou na Ucrânia ou Washington e Tel Aviv no Irã, eleva o risco de uma guerra nuclear.

O argentino buscou evitar alarmismo, mas disse que “a escalada para um ponto que todos nós não queremos não está excluída”. “Temos de ser realistas, obviamente há uma preocupação”, disse.

Ele citou outros riscos nucleares associados à guerra, como a atividade em torno da usina de Zaporíjia, ocupada pela Rússia no sul ucraniano. “Não estamos em um boa forma até haver um acordo de paz, alguma forma de entendimento” entre os rivais, afirmou. Nesta sexta, um drone explodiu a 800 metros de outra usina ucraniana, em Mikolaiv.

“Natureza é natureza. Mas nossa indústria é muito robusta, um Fukushima não vai ocorrer de novo”, disse, remetendo ao acidente nuclear de 2011 após um tsunami atingir a usina japonesa. “Com a ação humana, tudo é possível. Mas ainda não estamos na lei da selva, temos instituições, temos a AIEA”, afirmou.

“É por isso que eu falo com todo mundo. Estão brincando com fogo”, completou, repetindo avaliação que já havia feito sobre bombardeios e ataques com drones de lado a lado em Zaporíjia. Lá, uma equipe da AIEA permanece monitorando o estado dos seis reatores inoperantes.

Ante uma plateia de jornalistas russos e de países fora do eixo ocidental, Grossi ouviu críticas. Um repórter sul-africano disse que em seu país a visão é de que a AIEA age com viés para favorecer o Ocidente. “Os EUA bombardearam o Irã e nada aconteceu”, disse ele.

Grossi não perdeu a fleuma. “Eu não sou a polícia nuclear do mundo. Não deveriam atacar uma entidade multinacional. A ideia de favorecimento é mal informada”, respondeu, lembrando que o mandato da AIEA é “limitado e determinado pelos aderentes do Tratado de Não Proliferação Nuclear”.

Outra repórter questionou por que a agência não inspecionava o arsenal nuclear não declarado de Israel, de estimadas 90 bombas, e um indiano cobrou o mesmo sobre os armamentos de seu país e do rival Paquistão.

Em ambos os casos, a resposta foi a mesma: nenhum dos envolvidos é signatário do tratado, logo estão fora do alcance da AIEA. Ainda assim, ele disse que “é impensável” um conflito nuclear entre Islamabad e Nova Déli, apesar dos atritos constantes entre os vizinhos, como a breve guerra de maio passado.

Grossi vê a necessidade de impedir que novos atores entrem no clube nuclear —há duas semanas, o Paquistão assinou um acordo que na prática o obriga a defender até com a bomba a Arábia Saudita, temerosa do expansionismo militar de Israel na região.

“Já temos armas nucleares demais no mundo”, afirmou, sem se referir especificamente ao caso saudita.

No mais, o argentino defendeu o papel regulatório da AIEA sobre novas tecnologias, como os reatores miniaturizados, e elogiou o programa atômico brasileiro. “Ele é muito sofisticado. Só espero que Angra 3 seja acabada”, disse, sobre a atribulada construção da terceira usina nuclear do Brasil.