SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A festa de São Cosme e Damião, parte do imaginário popular do país, sofreu baques nos últimos anos. Especialistas elencam motivos: temos o peso da inflação encarecendo os sacos de guloseimas, a violência urbana que inibe a distribuição deles, a ascensão de igrejas evangélicas que desencorajam a prática, prefeituras dificultando a liberação para celebrações nas ruas e até novas demandas da sociedade, como a preocupação com o consumo de açúcar e ultraprocessados.

Acabou-se o que era doce? Também não é por aí. São muitas as camadas que vêm transformando essa tradição brasileira que mescla santos católicos com orixás gêmeos de matriz africana, os Ibejis. E isso tudo leva a uma reinvenção do Cosme e Damião.

“O que se observa é tensão, reconfigurações e adaptações locais”, diz a historiadora Carolina Rocha, pesquisadora no Iser (Instituto de Estudos da Religião). “Em alguns lugares, sim, pode haver retração, mas em outros a festa persiste e se reinventa. Assim, a tradição está longe de morrer: segue viva e festiva nas periferias, mobiliza as crianças nas ruas e marca a memória afetiva de gerações.”

Que a expansão evangélica pesa nessa equação, não dá para negar. A demonização de religiões afrobrasileiras fomenta entre fiéis uma aversão a essa festa, comemorada neste sábado (27).

A empregada doméstica Jaciele de Souza, 34, diz que não permite que seu filho pegue saquinhos açucarados na data —para ela, aquilo não é de Deus. “O doce em si não significa maldade e nem faz mal a saúde de ninguém”, diz a moradora de Paraisópolis, batizada numa igreja pentecostal em 2024. “O que me incomoda é a intenção da oferta. Tipo, comer um doce consagrado a deuses que não cremos, não cultuamos.”

Jaciele conta que, na infância, sua mãe, que já era crente, deixava-a aproveitar o São Cosme e Damião. “Ela entendia que eram apenas doces, nada demais.” Lembra sobretudo das balas de mel, que comia aos montes nessa fase do ano.

A filha pensa diferente e diz que “já tinha uma opinião formada” antes mesmo de se converter, “porque cresci na Igreja Católica”.

Rocha afirma que esse tipo de rejeição não é exclusividade dos crentes, embora hoje seja fartamente associada a eles. “Também encontramos resistência em setores católicos conservadores, que chamam a prática de ‘pag㒠ou ‘diabólica’.”

Ao mesmo tempo, aponta a historiadora e autora de “A Culpa É do Diabo: O que Li, Vivi e Senti nas Encruzilhadas do Racismo Religioso”, muitas igrejas passaram a organizar suas próprias festas infantis nessa época —uma espécie de concorrência com os terreiros. “Isso mostra que a tradição tem força de apelo comunitário.”

O pai de santo David Dias, do terreiro umbandista Aruanda, na zona sul paulistana, diz que já viu “saquinhos de Jesus” sendo distribuídos por grupos evangélicos. “Acontece coincidentemente em setembro. Surge como rebote, proposta de substituição.”

Doutorando na PUC-SP, Dias é autor de “Sincretismo na Umbanda – Pactos e Impactos na Identidade dos Povos de Terreiro”. E, como líder do Aruanda, há 15 anos celebra os erês.

Diz que ele mesmo incorpora um erê, o Zeca, de quem sabe muito pouco. “Ele é uma criança que gosta de amarelo. Quer bexiga amarela, suco amarelo, a roupa tem que ser amarela.”

Incorporar um erê, para quem crê nessa prática da umbanda, significa o médium receber em seu corpo uma entidade espiritual que se manifesta como criança. Daí apresentar cacoetes infantis, como mudar o jeito de falar e pedir doces.

Dias reconhece que as ruas mudaram de tempos para cá. E quem melhor, ele pergunta, do que os Racionais MCs para ilustrar essa metamorfose sócio-religiosa pela qual o Brasil vem passando?

Antes, “fragmentos do terreiro se espalhavam de modo incontrolável pela sociedade”, com a distribuição de saquinhos de doces.

Mano Brown canta nos anos 1990, em “Fim de Semana no Parque”, sobre jovens que “não têm videogame e às vezes nem televisão, mas todos eles têm um Doum, São Cosme e São Damião” —Doum, para a religiosidade de matriz africana, seria a essência infantil num trio formado com os santos de origem católica.

O mesmo Brown vai mandar depois, no rap “Vida Loka, Pt. 1”: “Ore por nós, pastor, lembra da gente/ No culto dessa noite, firmão, segue quente/ Admiro os crentes, dá licença aqui”.

“Ele já canta a mudança no território de culto dos erês”, afirma o pai de santo. “Olhando para a periferia e dizendo: houve mudança, ele admira crentes agora.”

O fator religioso é um entre tantos símbolos em mutação dessa festa. David Dias diz observar “cobrança por novos doces”, por exemplo. “Acho justo.”

Anos atrás, um saco poderia vir com maria-mole, balas e pirulitos, uma pipoca de arroz, um doce de merengue com cobertura de chocolate, e por aí vai. Não exatamente um primor nutricional.

Para Dias, a “conscientização da alimentação” não é qualquer coisa, não, sobretudo num espaço “majoritariamente negro, periférico, onde pessoas já estão submetidas a alimentação de nutrição baixa” —como diz ser o caso do seu terreiro.

“Por isso hoje não tenho só saquinhos. Vai ter mesa de fruta. Vai chegar festa de erê e não vai ver só guaraná, vai ver suco de mexerica, de laranja. Suco da fruta.”

Denisson d’Angiles, pai de santo no terreiro CEU Estrela Guia, também ampliou a oferta de frutas para o Cosme e Damião. “Temos buscado equilibrar o cardápio, sem abrir mão da alegria que os doces representam para as crianças. É um desafio bonito: preservar o simbólico e adaptar ao presente.”