SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Dizem que o fígado é parte da alma. Eu considero ter uma alma brasileira agora”, afirma a embaixadora britânica Stephanie Al-Qaq, 49, oito meses após receber um transplante de fígado pelo SUS (Sistema Único de Saúde) que salvou sua vida.
Tudo começou no fim de 2024, quando Al-Qaq contraiu dengue durante uma viagem em família para a praia. Apesar de conhecer os perigos das doenças tropicais e sempre usar repelente, acabou sendo picada. O que parecia ser uma dengue comum evoluiu rapidamente para algo raro e potencialmente fatal: hepatite fulminante, complicação que afeta menos de 1% dos infectados pelo vírus.
“Em 48, 72 horas, claramente vimos que ela estava entrando no quadro de insuficiência hepática fulminante, uma progressiva piora da função hepática sem sinal de reversibilidade”, explica o cardiologista Antônio Aurélio, coordenador da Rede DOr em Brasília, onde a britânica foi tratada.
Quando o fígado faliu, restavam apenas horas para salvá-la. A embaixadora foi colocada numa máquina de hemodiálise contínua para filtrar as toxinas que o órgão não conseguia mais processar. A amônia acumulada no sangue já afetava seu cérebro sinal de encefalopatia hepática, quando a morte se torna iminente.
“Quando tem essa encefalopatia, temos que correr porque esse paciente tem prioridade na lista de transplante nacional. O primeiro fígado que chega é para essa pessoa”, explica a coordenadora de hepatologia da Rede DOr, Liliana Mendes, que coordenou o caso clínico.
No Brasil, a fila de transplante de fígado segue um critério rígido de prioridade por gravidade. “Ou seja, quanto menos tempo a pessoa pode esperar, maior é a prioridade dela”, explica Aurélio. Pacientes com hepatite fulminante, como Al-Qaq, entram automaticamente como prioridade nacional, exceto se houver outra pessoa nas mesmas condições competindo pelo órgão no território brasileiro.
O processo é controlado pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT), que sinaliza quando surge um órgão compatível com as características do paciente: peso, altura e tipo sanguíneo. Para estrangeiros, há uma exigência adicional: precisam estar validados no sistema brasileiro, geralmente com CPF, ou ter autorização especial do Ministério da Saúde.
O médico ofereceu à embaixadora a opção de ser transferida para o Reino Unido, onde vive parte da família. “Mas ela está no Brasil há vários anos, já mora aqui, está estabelecida com o marido e não queria ir embora”, conta o médico.
“Eu estava muito bem cuidada aqui. Talvez as pessoas não saibam muito que o sistema de saúde do Brasil está forte”, diz Al-Qaq. “Quando passei essa experiência, muitos disseram: ah, mas você voltou para o Reino Unido. E eu respondia que não, que fiz todo o procedimento em Brasília.”
O caso mobilizou uma articulação única, e o Kings College London, referência mundial em transplantes, foi acionado. Eles enviaram o cirurgião Hector Vilca-Melendez para acompanhar o procedimento no país. Melendez, peruano formado em São Paulo, disse estar “muito grato à formação no Brasil” e veio “dar segurança para ela e a família”.
Aurélio explica que a avaliação de um órgão doado é bastante criteriosa e que, não raro, órgãos são recusados por não estarem em boas condições. “Primeiro checam-se exames laboratoriais e imagens do fígado. Depois, “a equipe vai até o doador-cadáver, faz a cirurgia e uma inspeção visual. Esse é o último ponto de OK de que o transplante vai acontecer”.
No caso da embaixadora, após cinco dias na lista de espera por um transplante, apareceu um doador compatível a poucos quilômetros de distância. A cirurgia durou seis horas e foi um sucesso. “O transplante foi maravilhoso. Não nos deu nenhum trabalho de funcionamento”, celebra Liliana.
A experiência permitiu à embaixadora comparar os dois maiores sistemas universais de saúde do mundo: “Cada um tem problemas, porque são públicos. Mas brasileiros e britânicos podem ser muito fiéis aos seus sistemas, porque eles não existem em outros lugares. Um atendimento para qualquer pessoa, não dependendo de recursos”, diz Al-Qaq.
Ela destaca que encontrou “as pessoas mais profissionais de sua carreira no SUS e no National Health Service – NHS, (Serviço Nacional de Saúde) pessoas que têm dentro delas uma vontade de ajudar. São médicos, enfermeiros, porteiros, todos conectados com seus pacientes”.
A cooperação entre Brasil e Reino Unido vai além do caso individual da embaixadora britânica. O modelo de agentes comunitários do SUS está sendo testado em Londres, com o médico Matthew Harris, do Imperial College, que trabalhou perto no Recife há mais de 20 anos. O programa piloto, com 200 agentes, já mostra resultados: 47% das pessoas que precisavam de imunização conseguiram receber, e houve redução de 7% nas consultas não agendadas.
A grandiosidade do SUS é refletida, também, nos dados: em 2024, o país alcançou um recorde histórico de mais de 30 mil transplantes de órgãos e tecidos, consolidando-se como referência internacional.
Em 2021, o Brasil registrou 23,5 mil transplantes; em 2022, 25,6 mil; em 2023, 28,7 mil; e em 2024, 30,3 mil. Uma curva em ascendência capaz de salvar milhares de vidas.
A embaixadora enfatiza a importância da doação: “Sempre vou ficar muito grata ao sistema de doações de transplante, que é público do mesmo jeito que no Reino Unido. E sempre vou ficar muito grata à quem me deu uma segunda chance de vida. É importantíssimo pensar na doação antes e falar com a família. A pessoa continua vivendo em você.”