SALVADOR, BA (FOLHAPRESS) – Durante o curto e intenso período da Tropicália, que durou de 1967 a 1969, o poeta Ferreira Gullar também foi um dos que deu sua contribuição ao movimento. No primeiro LP solo de Caetano Veloso, lançado em 1968, o baiano teve a parceria do maranhense Gullar na canção “Onde Andarás”.
“Onde andarás nesta tarde vazia, tão clara e sem fim? / Enquanto o mar bate azul, em Ipanema, em que bar, em que cinema te esqueces de mim?”.
Musicada por Caetano, que foi o primeiro a gravar a canção, os versos de “Onde Andarás” foram uma encomenda que Gullar recebeu de Maria Bethânia, que já cantava a música ao vivo em 1967, antes do irmão.
Mas a participação de Gullar na Tropicália não parou por aí. Em 1969, enquanto Gilberto Gil e Caetano Veloso estavam sitiados em Salvador, no limbo entre a prisão e o exílio, Gullar fez uma obra pouco conhecida, embora significativa, sobre o movimento.
Num surto artístico totalmente distinto do que foi a sua carreira, ele produziu telas de pop art tropicalistas.
“O mais fantástico é que, numa dessas obras, é como se alguém estivesse parindo a Tropicália”, diz Ernesto Bitencourt, dono de uma galeria de arte que leva seu nome, em Salvador.
É lá que, ainda este ano, depois de restaurá-las, ele pretende expor as duas telas de Gullar, adquiridas há três anos, mas que ficaram guardadas em seu acervo particular, em São Paulo.
Uma das telas está com a data de 13 abril de 1969, assinalada ao centro por Gullar, época em que se vivia no olho do furacão da contracultura no mundo.
Com a onipresença da guitarra elétrica, que modificou a música mundial naqueles anos 1960, as telas trazem colagens e desenhos retratando artistas da música brasileira como Os Mutantes, Gilberto Gil e Gal Costa.
Nas duas telas, Gullar interliga todos os personagens, emendando-os com desenhos de fios de cabelo, cordas de guitarra e fios elétricos.
As telas foram feitas com tinta guache, nanquim, colagens, segundo Bitecourt, em um trabalho minucioso. “É uma obra para ser estudada”, diz.
Nas colagens, Gullar deu especial destaque para Os Mutantes e para Gal Costa. Há um trecho em que Gal e Rita Lee se ligam pela extensão do cabelo de Gal, e as tranças de Rita estão plugadas como se fossem cabos. Ao lado, está escrito “Tranças elétricas da Ritinha”.
O neologismo “Galétrica”, numa referência a Gal Costa, aparece ao longo das ilustrações, numa delas escrito dentro de um coração ao lado de um rosto de Gal, que está com cabelos loiros desenhados por Gullar.
Os irmãos Sérgio Dias e Arnaldo Baptista, dos Mutantes, também surgem com destaque. O guitarrista Sérgio Dias é representado com metade do seu rosto sendo formado por uma guitarra. Entre ele e Arnaldo está a frase “Esse treco é Godardiano: não tem fim nem começo!!!”, escrito por Gullar.
“A Lucinha [Barbosa, sua esposa] achou o estilo do Gullar muito parecido com o meu. A partir de um buraquinho pequeno, eu desenvolvo com mil ideias, né?”, diz o compositor, multi-instrumentista e membro fundador dos Mutantes, Arnaldo Baptista, que também é artista plástico.
“E há também um lado que tem a ver com as colagens, que também lembram meu estilo, né? E o lado louco, como uma menina de perna aberta com coisas saindo de dentro dela. Muito interessante!”, avalia Arnaldo, que não conhecia as telas e não se lembra de ter tido contato com Ferreira Gullar naquela época.
Numa das colagens, o apresentador Chacrinha, referência para o tropicalismo, está numa “privada elétrica” em uma “cagada subdesenvolvida”.
As telas de Gullar têm ecos da pop art britânica dos anos 1950 e 1960, protagonizada por artistas como Peter Blake, Richard Hamilton e Pauline Boty.
Em letras pequenas, as telas são repletas de frases escatológicas. Há uma referência nada elogiosa, indicada com uma seta, a um desenho do que parece ser o cantor Frank Zappa. Gullar também escreveu nomes de bandas e artistas estrangeiros como Canned Heat, The Who, The Mothers of Invention, The Yardbirds, Steve Miller Band e Donovan.
“Big Boy todo dia na Mundial”, lê-se numa referência ao DJ carioca Big Boy e seu programa de rádio. Há ainda versos da música “2001”, de Tom Zé e Rita Lee, escritos em caipirês.
Apesar da parceria em “Onde Andarás”, não se percebe nenhuma ilustração que remeta a Caetano Veloso. Bethânia, que não participou da Tropicália, também não aparece.
Mas há uma ilustração do rosto de Gilberto Gil e o verso “Não temos tempo de temer a morte”, da canção “Divino, Maravilhoso”, que Gil e Caetano fizeram para Gal cantar.
Outras menções a Caetano são a canção “Saudosismo” e a frase “Fundiu a cuca”, dita por ele durante seu furioso discurso no 3º Festival Internacional da Canção, em 1968.
Na tela, a frase aparece ao lado da figura identificada por Gullar como o Tio Barnabé, mas parecido com o pintor Salvador Dalí, como o próprio Arnaldo Baptista, que está puxando sua barba, observou.
“E ele coloca o Dalí, eu lá com o Dalí, achei uma coisa muito interessante e surrealista. Uma influência minha também. O Gullar é o Dalí daqui. Lá no céu!”, diz Arnaldo Baptista.