PARIS, FRANÇA (FOLHAPRESS) – Na audição de Lorena Pires Adão para a Academia da Ópera de Paris, em dezembro, na Ópera da Bastilha, a primeira ária pedida foi “Chi il bel sogno di Doretta”, de Giacomo Puccini. Essa, ela tirou de letra: já cantava há muito tempo. O problema era que ela não sabia qual seria a segunda. As pernas tremiam, diz.

“Eu estava torcendo: ‘Não escolha a Micaela, não escolha a Micaela [personagem de “Carmen”, de Georges Bizet], porque eu estava menos preparada para ela. Aí foram escolher a Micaela, para testar o meu francês. Eu fiz, na cara e na coragem.”

Lorena passou. Hoje, aos 25 anos, a filha e neta de quilombolas está no programa de dois anos de residência da Academia da Ópera de Paris, que inicia nesta sexta (26) uma turnê por Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. Em São Paulo, os jovens se apresentam no Theatro São Pedro, no domingo (28), e no Municipal, em 3 e 4 de outubro.

É uma coincidência simbólica que a soprano tenha sido aprovada com uma ária de “Carmen”, ópera que tem uma relação com a história do canto lírico brasileiro. Em 1965, Maria d’Apparecida, filha de empregada doméstica, entrou no palco da Ópera de Paris para interpretar a personagem-título do clássico de Bizet.

D’Apparecida foi a primeira brasileira negra a integrar o corpo fixo da Ópera parisiense. Lorena pode se tornar, um dia, a segunda. Mas por enquanto diz não ter meta fixa. “Meu objetivo de fato é me aperfeiçoar enquanto artista. As oportunidades que vão vir após isso, aí eu resolvo quando elas vierem.”

Radicada na França, D’Apparecida morreu em 2017, solitária, aos 91 anos, em seu apartamento na rua Auguste Vacquerie, no elegante 16º distrito de Paris. Recentemente, vem sendo resgatada do esquecimento. Foi homenageada em julho no espetáculo “Marias do Brasil”, no Teatro do Châtelet, parte da programação da “temporada cruzada” França-Brasil, da qual a atual turnê da Academia também faz parte.

Na semana da audição, Lorena decidiu fazer um tour especial. Foi até o número 19 da rua Auguste Vacquerie ver a placa comemorativa inaugurada no ano passado no prédio onde Maria d’Apparecida morava. A soprano estava acompanhada de um amigo especial —Ramon Theobald, premiado pianista brasileiro que foi residente na Academia da Ópera de 2021 a 2023.

Theobald é “chefe de canto”, função pouco conhecida, mas essencial no mundo da ópera. É quem acompanha, ao piano, os cantores na preparação dos papéis (ajudou, inclusive, Lorena a preparar a audição da Bastilha). Ele possui uma qualidade rara e muito requisitada, a chamada “primeira vista”, o dom para executar uma partitura sem estudo prévio.

Tanto Theobald quanto Lorena orgulham-se de serem produtos do ensino público e gratuito. Ele cursou piano na Universidade Federal do Rio de Janeiro, e ela, canto na Faculdade de Música do Espírito Santo, estadual. Theobald exalta as instituições e políticas públicas que permitiram aos dois chegar aonde chegaram. “Meu pai é serralheiro e ainda sobe em telhado para eu ficar aqui na França tocando piano”, diz, emocionado.

Uma dessas políticas foi decisiva na carreira de Lorena: o Concurso de Canto Lírico Joaquina Lapinha, promovido pelo Conservatório de Tatuí (SP) e dedicado a cantores pretos, pardos e indígenas. Ela foi a vencedora em 2023, abrindo portas para as audições que a levariam até Paris.

Lorena é descendente de quilombolas do sul da Bahia. Os pais de Lorena, João e Nice, na infância saíam de jegue de madrugada para vender a colheita da roça nas feiras das cidades próximas. “Do meu pai, herdei muito essa persistência, e da minha mãe, o lado sonhador. Ela sempre sonhou muito, mesmo com pouco.” Ainda é Nice que costura os vestidos com que Lorena se apresenta.

O impacto maior do preconceito em sua trajetória, segundo ela, foi quase ter limitado sua ambição. “O racismo me fazia sempre ficar no meu canto. Adorava música, adorava arte, mas fui me retraindo.” Para lidar com tantas mudanças, Lorena começou há alguns meses a fazer sessões de terapia, remotas, com uma psicóloga do Rio de Janeiro, negra como ela.

Além de Lorena e Theobald, a turnê contará com outro brasileiro, o baixo-barítono Luís Felipe Sousa, também residente na Academia. Serão dois programas: “Mélodies françaises, Melodias brasileiras”, com obras de Villa-Lobos, Chiquinha Gonzaga, Reynaldo Hahn e Francis Poulenc, entre outros; e “Bizet e seus Contemporâneos”, homenagem aos 150 anos da morte do compositor de “Carmen”, que terá em São Paulo a regência de Roberto Minczuk, maestro titular da Orquestra Sinfônica Municipal.

“É uma turnê muito importante não só para a Academia, mas para a Ópera de Paris, que há muito tempo [duas décadas] não voltava ao Brasil”, disse à Folha a diretora da Academia da Ópera de Paris, Myriam Mazouzi. “É a possibilidade de encontrar um novo público. O importante para mim, sempre é o intercâmbio.”

Além da turnê, dois bailarinos-estrelas da Ópera, Stéphane Bullion e Alice Renavand, darão masterclasses em três cidades brasileiras durante a temporada da França no Brasil.

Para Mazouzi, Lorena tem todas as possibilidades para se tornar titular da Ópera. “Uma grande parte dos residentes é convidada na programação de Alexandre Neef [diretor-geral da Ópera Nacional de Paris]. Alguns entram na trupe, outros são convidados como ‘super-solistas’.”