SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Criados para garantir o controle social do SUS (Sistema Único de Saúde), os conselhos municipais de saúde (CMSs) estão submetidos ao poder político dos prefeitos e, por isso, têm sua função comprometida. Funcionários das prefeituras acumulam a presidência desses colegiados, o que pode atrapalhar a fiscalização e contraria o modelo previsto em lei.
Em São Paulo e Cuiabá, capitais com redes municipais robustas, são os próprios secretários de Saúde que comandam os colegiados. A prática se repete em cidades de médio porte, onde a proximidade com a gestão é ainda maior.
A lei 8.142/1990 estabeleceu os conselhos municipais como órgãos permanentes e deliberativos, responsáveis por fiscalizar a aplicação de recursos, aprovar relatórios de gestão e acompanhar a execução das políticas públicas de saúde. Para assegurar representatividade, a legislação fixa a composição: 50% dos membros são usuários do sistema do SUS, 25% trabalhadores da Saúde e 25% gestores ou prestadores.
A resolução 453 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), criada em 2012, reforçou essas regras, proibindo que pessoas em cargos de confiança ocupem cadeiras de usuários ou de trabalhadores e determinando autonomia administrativa, secretaria executiva própria e orçamento específico para os colegiados. No entanto, a medida foi inócua.
Em diversos municípios, pessoas ligadas às próprias gestões, como servidores comissionados, são indicadas na cota da sociedade civil. Na prática, essas cadeiras, que deveriam ser preenchidas por usuários do sistema de saúde ou trabalhadores independentes, vão para membros da administração municipal.
Para o advogado Hélio Ramos, especialista em direito constitucional e gestão pública, o problema está na fragilidade normativa. “Uma resolução não tem força de lei para impor sanções a prefeitos. O resultado é que eles descumprem regras sem sofrer consequências. O conselho perde a independência e se transforma em braço da própria gestão que deveria fiscalizar.”
Para ele, a solução seria adotar modelo semelhante ao dos conselhos tutelares, para os quais há eleição direta e garantia de mandato. Sem poderem ser exonerados, os membros têm liberdade de atuação.
CASOS REPETIDOS
Em Várzea Grande, na região metropolitana de Cuiabá, Joilson Ruas assumiu a presidência do conselho local após a morte do antecessor. Concursado da secretaria de Saúde, já havia representado a gestão do ex-prefeito Kalil Baracat (MDB) no conselho.
Para Ruas, a principal barreira é a falta de autonomia financeira. “Até para custear uma visita à unidade precisamos pedir autorização da secretaria.” Ele, no entanto, diz não ver problemas em um secretário presidir o órgão. “É necessário que seja alguém que entenda da saúde.”
O histórico de São José do Rio Preto (SP) mostra quão comum é a prática. O cirurgião-dentista Fernando Araújo, que ocupa pela quarta vez o posto de presidente do CMS local, acumulou o cargo quando chefiou a Saúde, na década de 1990. “Foi um erro”, reconhece. “É totalmente incompatível que o secretário fiscalize a si mesmo.”
Em Cuiabá, a secretária Danielle Carmona também preside o conselho. Ela afirma que as decisões do colegiado são apresentadas e respeitadas. “As deliberações do pleno são homologadas quase obrigatoriamente pelo Executivo. Em casos excepcionais, recorremos ao Ministério Público.”
O secretário municipal de Saúde de São Paulo, Luiz Carlos Zamarco, acha legítimo exercer a dupla função, caso dele também. “A lei não impede. Todas as matérias passam por votação em plenário.”
CAPACITAÇÃO
Para Rosa Anacleto, representante do CNS, a sobreposição enfraquece o caráter deliberativo do órgão. Mas ela diz que, além disso, a fragilidade vem também da falta de preparo dos conselheiros. “Muitos não conhecem os relatórios obrigatórios, que são instrumentos para aprovar ou rejeitar planos de gestão. Sem formação, o conselho perde força diante da prefeitura.”
O CNS tenta enfrentar esse problema com programas de capacitação. Mas, segundo Anacleto, o desafio é maior. “A população precisa saber que o conselho existe e participar. Sem isso, quem decide continua sendo o prefeito.”
Há exemplos que mostram outro caminho. Em Sinop (MT), o advogado Yuri Bezerra, representante da OAB, foi eleito presidente do conselho e defende a separação de papéis. “A presidência precisa ser técnica. Quando o secretário assume, ele elabora e executa ao mesmo tempo. Isso é um erro.”
Em Campinas (SP), o presidente do conselho municipal, Paulo Mariante, reforça a ideia: “O conselho não é oposição nem situação. É um espaço de fiscalização e deliberação, capaz de apoiar quando a política é correta e criticar quando não é.”
A presidente do CNS, Fernanda Magano, reafirma que a prática é comum, ocorrendo em vários municípios do país, “o que compromete a paridade e enfraquece o controle social”. O órgão teve de intervir em casos recentes em Mato Grosso do Sul, Rondônia, Paraíba e Piauí, para mediar conflitos e orientar os conselhos a fim de garantir seu poder de fiscalização.
Para o advogado Ramos, essas experiências revelam que o controle social só funciona com autonomia real. “Enquanto não houver uma lei nacional que assegure mandatos independentes, orçamento próprio e sanções para prefeitos, os conselhos seguirão reféns da vontade política. E quem perde é o cidadão que depende do SUS.”
Esta reportagem foi produzida durante o 10º Programa de Treinamento em Jornalismo de Saúde da Folha, patrocinado pelo Laboratório Roche e pelo Einstein Hospital Israelita.