SETÚBAL, PORTUGAL (FOLHAPRESS) – Banhada pelos rios Sado e Tejo e com relevo marcado pela serra da Arrábida, a península de Setúbal, ao sul de Lisboa, busca reforçar sua identidade vitivinícola em meio a um cenário de turbulência no mercado global de vinhos.

Conhecida pelo célebre moscatel de Setúbal, a região também se destaca pelo raro moscatel roxo, além da casta tinta castelão e da branca fernão-pires, que servem de base para a maioria dos vinhos locais.

Setúbal é uma das 14 regiões de Portugal com denominação de origem (DO), áreas geográficas que delimitam porções do país onde a produção de determinados tipos de vinhos está intrinsecamente ligada ao local e às tradições.

“As denominações de origem são um bem público. Temos a função de certificar, controlar a origem e promover essas marcas”, explica Henrique Soares, presidente da Comissão Vitivinícola Regional da Península de Setúbal, responsável pelo selo que garante que os vinhos seguem os padrões de produção determinados pela DO.

A comissão calcula que a península concentra cerca de 8.000 hectares de vinhas, com produção anual estimada em torno de 50 milhões de litros. Mais de 80% desse volume é certificado, índice que coloca Setúbal no mesmo patamar de regiões vinícolas como a do Alentejo e dos Vinhos Verdes.

“Esse é um dos motivos que fazem com que, apesar de sermos a sexta região em produção, sejamos a segunda em vendas no mercado nacional e, em valor, normalmente a quarta colocada.”

Ainda que a vinificação em Setúbal seja secular, a elevação da península ao atual patamar de produção é mais recente.

A modernização de vinícolas familiares e o aprimoramento de técnicas de cultivo e vinificação durante as últimas décadas foram um dos motores desse crescimento. Outro fator que pesou na popularização dos vinhos foi a criação de marcas próprias que consolidaram a região no mercado doméstico e deram projeção global à península.

Um dos nomes mais emblemáticos dessa virada é o da vinícola José Maria da Fonseca, responsável pelo Periquita, cujas origens remontam ao século 19, ainda que a marca tenha sido registrada apenas nos anos 1940. Outro é a é a Casa Ermelinda Freitas, empresa familiar comandada historicamente por mulheres, com ao menos cinco gerações de tradição na produção vinícola.

Os negócios da família Freitas, por exemplo, ganharam tração há cerca de 30 anos, quando a companhia passou a introduzir novas castas de uva em seu portfólio e criou rótulos como forma de fortalecer o nome da vinícola. Atualmente, a casa se consagrou como uma das maiores empresas de vendas de varejo em Portugal, produzindo cerca de 25 milhões de litros por ano.

“Nossa história era de vinhos sem marcas. Eu as introduzi quando meu pai faleceu e vim ajudar minha mãe, porque antes só produzíamos vinhos a granel”, lembra Leonor Freitas, filha da matriarca que dá nome à empresa.

Apesar do aumento da produção vinícola na região, produtores locais acreditam que, após décadas de crescimento, Setúbal entrou em uma fase de estabilização e precisa alavancar os negócios por meio da agregação de valor aos produtos. A avaliação é de que ainda persiste certo preconceito em relação a castas típicas da região, como a castelão, frequentemente associadas a vinhos de menor complexidade.

“Agora queremos crescer em valor, firmar notoriedade”, enfatiza Henrique Soares. “Precisamos convencer o consumidor a dar um pouco mais de valor ao nosso vinho e pagar mais por ele.”

Filipe Cardoso, enólogo e proprietário da Quinta do Piloto, segue a mesma linha. Para ele, é preciso elevar o perfil da casta castelão e reafirmá-la como grande símbolo da região.

“Aqui nossa bandeira é o castelão, e nossos topos de gama também são o castelão. Os grandes vinhos da Borgonha são os pinot noir; nosso diferencial tem de ser o castelão”, diz.

CRISE DE DEMANDA

Além da necessidade de valorização da produção local, outro desafio que se avizinha para a região é uma crise de demanda influenciada por diversos fatores.

Na avaliação da Comissão Vitivinícola de Setúbal, mudanças de hábito das novas gerações reduziram o consumo de vinho e geraram excedentes que precisam ser manejados pelas empresas. “Há mais de duas décadas não enfrentávamos uma crise como esta”, diz Soares. “Estamos diante de um excedente estrutural; países como Chile e França estão arrancando vinhedos.”

A conjuntura desfavorável se agravou com a eleição de Donald Trump e a imposição de tarifas sobre produtos europeus. Atualmente, cerca de 30% da produção certificada de Setúbal é exportada, e os Estados Unidos estão entre os principais compradores fora da União Europeia.

“Com as tarifas de Trump, por receio dos importadores americanos, houve um aumento das compras e depois as encomendas pararam”, lembra o presidente da comissão.

Para driblar as incertezas, produtores locais apostam na diversificação de mercados e o Mercosul, especialmente o Brasil, surge como uma oportunidade estratégica. Segundo Soares, a expectativa é grande, embora os efeitos concretos de um acordo só devam se materializar no longo prazo. “Para nós era uma oportunidade interessante, sobretudo para ficarmos mais competitivos com o Chile e a Argentina, porque temos uma desvantagem.”

ENOTURISMO

Outra estratégia para atrair novos consumidores e reforçar o crescimento do setor é o enoturismo. A região investe em experiências que conectam visitantes à história das vinícolas e aos sabores locais. Na adega Venâncio da Costa Lima, uma das mais antigas da península, fundada em 1914, é possível conhecer a tradição familiar na elaboração dos vinhos e do moscatel de Setúbal.

O visitante pode participar de programas que incluem visitas guiadas à adega e degustações acompanhadas de produtos regionais, com valores que variam de 15 € (R$ 93) a 39 € (R$ 243) por pessoa. A Casa Ermelinda Freitas e a adega José Maria da Fonseca também oferecem serviços similares, de 10 € (R$ 62,40) a 100 € (R$ 625,), a depender da qualidade dos vinhos ofertados.

Outra opção é a visita seguida de degustação no Palácio da Bacalhôa, antiga propriedade da Casa Real portuguesa considerada a mais bela quinta da primeira metade do século 15. Lá, os programas de enoturismo incluem visitas guiadas entre 6 € (R$ 37) a 15 € (R$ 93) por pessoa, que podem ser complementadas com degustações a partir de 15 € -chegando a 250 € (R$ 1.563), para quem deseja se aventurar nas provas especiais.

Já quem pretende relaxar nas férias sem perder a oportunidade de provar os vinhos da região, a Serenada oferece um hotel boutique ao sul da península, próximo de praias e com vista para a serra de Grândola, que se impõe sobre as vinhas usadas na pequena produção da família proprietária. Os donos oferecem café da manhã, piquenique e jantar em clima intimista que faz o visitante se sentir em casa.

Para Henrique Soares, o enoturismo, ainda que represente uma parcela pequena do faturamento das empresas, pode se tornar uma estratégia interessante para a divulgação das marcas. “Houve uma explosão do turismo e Portugal nos últimos dez anos e as vinícolas começaram a perceber esse potencial, porque você vende seu vinho, conta sua história e conhece seu cliente.”

“Esse é um caminho muito explorado na Áustria, Suíça, França, Itália, Espanha e outros países. No nosso caso ainda é residual, mas nossa pretensão de crescer no enoturismo é grande.”