BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O TCU (Tribunal de Contas da União) decidiu nesta quarta-feira (24) avisar o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de que perseguir o piso inferior da meta de resultado primário, em vez do centro, é uma irregularidade e não condiz com as regras estipuladas na legislação.

A decisão do plenário da corte de contas pode impor um revés à equipe econômica e levar à necessidade de um novo congelamento de recursos no Orçamento de 2025.

A meta fiscal deste ano é de déficit zero, mas a margem de tolerância prevista na lei do arcabouço fiscal permite um resultado negativo de até R$ 31 bilhões. O governo vem perseguindo esse limite inferior e, no último relatório de avaliação do Orçamento, previu um déficit de R$ 30,2 bilhões, ou seja, dentro do intervalo da meta.

Se prevalecer a decisão do TCU, o governo precisará buscar mais R$ 30 bilhões em receitas para cobrir o déficit, fazer um contingenciamento nesse mesmo valor ou promover um mix entre essas duas medidas para chegar ao déficit zero.

O ministro Fernando Haddad (Fazenda) disse na noite desta quarta que o Executivo vai recorrer da decisão. A pasta também emitiu uma nota conjunta com o Ministério do Planejamento e Orçamento, na qual os dois defendem o entendimento adotado pelo governo. Segundo os órgãos, a meta é definida “em banda e não em ponto”.

“Assim, a meta de primário é descumprida quando o resultado primário não alcançar o limite inferior da banda. Trata-se, portanto, de mecanismo jurídico obrigatório e vinculado, aplicado ao orçamento de todos os Poderes”, diz o comunicado.

A jornalistas, Haddad afirmou estar confiante de que a decisão do TCU não terá maiores consequências para o Orçamento. “Acredito que nós vamos esclarecer, inclusive, qual a estratégia que nós estamos usando para buscar o melhor resultado possível”, disse. Formalmente, o Executivo ainda não foi notificado da decisão.

O governo vem perseguindo o piso da meta sob o argumento jurídico de que uma emenda constitucional de 2019 tornou o Orçamento impositivo, o que obriga a execução de todas as despesas, à exceção dos casos em que há impedimentos técnicos.

À luz dessa regra, o Executivo entendeu que não poderia fazer uma contenção maior de gastos para chegar ao centro da meta se, a rigor, o piso inferior já garantiria o cumprimento do alvo.

Essa interpretação jurídica gerou controvérsia dentro do próprio governo, já que técnicos da área fiscal discordam dessa posição. No entanto, ela prevaleceu e contribuiu para minimizar ou até evitar a necessidade de o governo segurar gastos em diferentes momentos desde o início de 2024.

Hoje, por exemplo, apesar de a equipe econômica prever um déficit de R$ 30,2 bilhões, não há qualquer contingenciamento em vigor. O contingenciamento é o instrumento usado para segurar despesas quando há ameaça ao alcance da meta fiscal.

O que existe atualmente é um bloqueio de R$ 12,1 bilhões. Mas o bloqueio é uma ferramenta distinta, aplicada quando é preciso remanejar espaço entre despesas, cortando verbas discricionárias (como custeio e investimentos) para abrir espaço para outras obrigatórias (como benefícios assistenciais).

Haddad destacou que o governo inclusive tentou revogar a impositividade no orçamento no fim do ano passado, numa PEC (proposta de emenda à Constituição) que era parte do pacote de contenção de gastos, mas o trecho caiu na tramitação no Congresso.

O entendimento sobre a meta foi proposto pelo relator, ministro Benjamin Zymler, e aprovado de forma unânime pelo plenário do TCU.

O texto prevê “dar ciência ao Ministério do Planejamento e Orçamento de que a adoção do limite inferior do intervalo de tolerância, em substituição ao centro da meta de resultado primário, como parâmetro para a limitação de empenho e movimentação financeira, revela-se incompatível com o regime jurídico-fiscal vigente”.

Na linguagem da corte de contas, “dar ciência” significa informar ao órgão a certeza de que a situação em questão é irregular. Embora não seja uma determinação, isto é, uma ordem direta para o governo adotar determinada conduta, trata-se de uma espécie de aviso de que, se o gestor persistir na irregularidade, isso pode gerar responsabilização no futuro.

A decisão do plenário é um degrau acima dos alertas que o TCU vinha emitindo sobre os riscos de o governo descumprir a meta fiscal devido à decisão de perseguir o piso. A subida de tom teve um fundamento: a redação da LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2025.

Numa tentativa de dissipar questionamentos a esse ponto, que se acumulavam desde 2024, a equipe econômica tentou emplacar no projeto de LDO de 2025 um artigo que explicitava o piso inferior da meta como referência para adotar ou não um contingenciamento de despesas. A manobra, no entanto, deu errado: o Congresso não só rejeitou o trecho como decidiu também explicitar que a referência deve ser o centro da meta.

Com base nessa redação, o TCU obteve a fundamentação legal de que precisava para decidir sobre o tema. Em 2024, ano em que a redação da LDO era bem mais vaga, a corte de contas acabou não se manifestando sobre a questão numa consulta feita pelo próprio governo.

Em seu voto, Zymler endossou argumentos do auditor-chefe da AudFiscal (unidade responsável por auditorias ligadas às contas públicas) de que o limite inferior não é a meta em si, mas apenas uma margem para ajudar o governo a administrar imprevistos.

“Condicionar o contingenciamento ao risco do não cumprimento do limite inferior da meta de resultado transformaria esse limite, na prática, na própria meta fiscal, o que vai de encontro à finalidade da instituição de um regime de metas com intervalo de tolerância, bem assim aos objetivos de prevenir riscos fiscais e garantir a transparência e a previsibilidade da gestão fiscal”, disse o ministro.

Ele também traçou um paralelo entre a meta fiscal com bandas e o regime de metas de inflação, principal guia do Banco Central em suas decisões de política monetária.

Hoje, a meta de inflação é de 3% ao ano, com margem de tolerância de 1,5 ponto para mais ou menos. Ao decidir o rumo da taxa básica de juros, a Selic, o Copom (Comitê de Política Monetária) precisa perseguir os 3%, que são o alvo central definido pelo CMN (Conselho Monetário Nacional).

“Assim como na política monetária, onde o foco no centro da meta reforça a credibilidade e a previsibilidade da atuação do Banco Central, a política fiscal deve orientar-se pelo centro da meta de resultado primário, utilizando os limites de tolerância apenas como salvaguardas e não como parâmetros de planejamento”, diz o voto.

No relatório, Zymler também reproduziu os argumentos do auditor-chefe da AudFiscal de que a conduta atual do Executivo tem levado o governo a buscar respaldo judicial para excluir despesas imprevistas da meta fiscal, embora a criação da margem de tolerância tivesse o objetivo de justamente acomodar esse tipo de choque.

O documento cita casos observados em 2024, quando o governo precisou recorrer ao STF (Supremo Tribunal Federal) para descontar gastos extras com o enfrentamento às enchentes no Rio Grande do Sul e às queimadas nas regiões Norte e Centro-Oeste.

“Situações como essa poderiam ter sido absorvidas, pelo menos em parte, pela faixa de tolerância prevista na LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] e na LC 200, caso o centro da meta fosse o parâmetro de gestão”, diz o relatório.

“Ao não deixar margem, a execução fiscal torna-se dependente de autorizações judiciais extraordinárias, comprometendo a previsibilidade, a transparência e a ação planejada exigidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal.”

O auditor-chefe apontou ainda que as projeções da trajetória da dívida pública são elaboradas pelo governo tendo como premissa o alcance do centro da meta de resultado primário. Segundo o técnico, isso cria uma dissonância entre o parâmetro usado para estimar a sustentabilidade da dívida e aquele efetivamente perseguido na execução orçamentária.

“Isso significa, na prática, que o próprio instrumento legal de planejamento parte de uma meta mais ambiciosa para convencer quanto à viabilidade da estabilização da dívida, mas, na execução, adota-se um parâmetro mais frouxo, incompatível com as projeções que justificaram o planejamento”, diz o documento.

“Tal desalinhamento fragiliza a credibilidade da política fiscal e pode transmitir aos agentes econômicos a percepção de que as metas são tratadas com menor rigor, aproximando-se mais de limites máximos aceitáveis de endividamento do que de compromissos efetivos de resultado”, acrescenta.