BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O TCU (Tribunal de Contas da União) decidiu nesta quarta-feira (24) avisar o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que perseguir o piso inferior da meta de resultado primário, e não o centro, é uma irregularidade e não condiz com as regras estipuladas na legislação.
A decisão do plenário da corte de contas pode impor um revés à equipe econômica e levar à necessidade de um novo congelamento de recursos no Orçamento de 2025.
A meta fiscal deste ano é de déficit zero, mas a margem de tolerância prevista na lei do arcabouço fiscal permite um resultado negativo de até R$ 31 bilhões. O governo vem perseguindo esse limite inferior e, segundo o último relatório de avaliação, prevê um déficit de R$ 30,2 bilhões, ou seja, dentro do intervalo da meta.
Se prevalecer a decisão do TCU, o governo precisará buscar mais R$ 30 bilhões em receitas para cobrir o déficit, fazer um contingenciamento nesse mesmo valor ou promover um mix entre essas duas medidas.
O Executivo ainda pode recorrer da decisão do tribunal. Procurados, Casa Civil, Ministério da Fazenda e Ministério do Planejamento e Orçamento ainda não se manifestaram.
O governo vem perseguindo o piso da meta sob o argumento jurídico de que uma emenda constitucional de 2019 tornou o Orçamento impositivo, ou seja, o governo seria obrigado a executar todas as despesas, à exceção dos casos em que há impedimentos técnicos. À luz dessa regra, o governo entendeu que não poderia fazer uma contenção maior de gastos para chegar ao centro da meta se, a rigor, o piso inferior já garantiria o cumprimento do alvo.
Essa interpretação jurídica gerou controvérsia dentro do próprio governo, já que técnicos da área fiscal discordam dessa posição. No entanto, ela prevaleceu e contribuiu para minimizar ou até evitar a necessidade de o governo segurar gastos em diferentes momentos desde o início de 2024.
Hoje, por exemplo, apesar de a equipe econômica prever um déficit de R$ 30,2 bilhões, não há qualquer contingenciamento em vigor. O contingenciamento é o instrumento usado para segurar despesas quando há ameaça ao alcance da meta fiscal.
O que está em vigor atualmente é um bloqueio de R$ 12,1 bilhões. Mas o bloqueio é uma ferramenta distinta, aplicada quando é preciso remanejar espaço entre despesas, cortando verbas discricionárias (como custeio e investimentos) para abrir espaço para outras obrigatórias (como benefícios assistenciais).
O entendimento sobre a meta foi proposto pelo relator, ministro Benjamin Zymler, e aprovado de forma unânime pelo plenário do TCU.
O texto prevê “dar ciência ao Ministério do Planejamento e Orçamento de que a adoção do limite inferior do intervalo de tolerância, em substituição ao centro da meta de resultado primário, como parâmetro para a limitação de empenho e movimentação financeira, revela-se incompatível com o regime jurídico-fiscal vigente”.
Na linguagem da corte de contas, “dar ciência” significa informar ao órgão a certeza de que a situação em questão é caracterizada como irregular. Embora não seja uma determinação, isto é, uma ordem direta para o governo adotar determinada conduta, trata-se de uma espécie de aviso de que, se o gestor persistir na irregularidade, isso pode gerar responsabilização no futuro.
Em seu voto, Zymler endossou argumentos do auditor-chefe da AudFiscal (unidade responsável por auditorias ligadas às contas públicas) de que o limite inferior não é a meta em si, mas apenas uma margem para ajudar o governo a administrar imprevistos.
“Condicionar o contingenciamento ao risco do não cumprimento do limite inferior da meta de resultado transformaria esse limite, na prática, na própria meta fiscal, o que vai de encontro à finalidade da instituição de um regime de metas com intervalo de tolerância, bem assim aos objetivos de prevenir riscos fiscais e garantir a transparência e a previsibilidade da gestão fiscal”, disse o ministro.
Ele também traçou um paralelo entre a meta fiscal com bandas e o regime de metas de inflação, principal guia do Banco Central em suas decisões de política monetária.
Hoje, a meta de inflação é de 3% ao ano, com margem de tolerância de 1,5 ponto para mais ou menos. Ao decidir o rumo da taxa básica de juros, a Selic, o Copom (Comitê de Política Monetária) precisa perseguir os 3%, que são o alvo central definido pelo CMN (Conselho Monetário Nacional).
“Assim como na política monetária, onde o foco no centro da meta reforça a credibilidade e a previsibilidade da atuação do Banco Central, a política fiscal deve orientar-se pelo centro da meta de resultado primário, utilizando os limites de tolerância apenas como salvaguardas e não como parâmetros de planejamento”, diz o voto.
No relatório, Zymler também reproduziu os argumentos do auditor-chefe da AudFiscal de que a conduta atual do Executivo tem levado o governo a buscar respaldo judicial para excluir despesas imprevistas da meta fiscal, embora a criação da margem de tolerância tivesse o objetivo de justamente acomodar esse tipo de choque.
“A experiência recente de 2024 evidencia o problema de adotar o limite inferior como referência. Naquele ano, o governo federal precisou recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para, por meio de decisões judiciais, excluir do cálculo da meta de resultado primário diversos dispêndios excepcionais -incluindo os relativos à tragédia no Rio Grande do Sul- para evitar o descumprimento da meta. Situações como essa poderiam ter sido absorvidas, pelo menos em parte, pela faixa de tolerância prevista na LDO [Lei de Diretrizes Orçamentárias] e na LC 200 [lei do arcabouço fiscal], caso o centro da meta fosse o parâmetro de gestão”, diz o relatório.
“Ao não deixar margem, a execução fiscal torna-se dependente de autorizações judiciais extraordinárias, comprometendo a previsibilidade, a transparência e a ação planejada exigidas pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).”
O auditor-chefe apontou ainda que as projeções de trajetória da dívida pública são elaboradas pelo governo tendo como premissa o alcance do centro da meta de resultado primário. “Ao adotar-se o limite inferior como referência para o contingenciamento, cria-se uma dissonância entre o parâmetro usado para estimar a sustentabilidade da dívida e aquele efetivamente perseguido na execução orçamentária”, disse.
“Isso significa, na prática, que o próprio instrumento legal de planejamento parte de uma meta mais ambiciosa para convencer quanto à viabilidade da estabilização da dívida, mas, na execução, adota-se um parâmetro mais frouxo, incompatível com as projeções que justificaram o planejamento. Tal desalinhamento fragiliza a credibilidade da política fiscal e pode transmitir aos agentes econômicos a percepção de que as metas são tratadas com menor rigor, aproximando-se mais de limites máximos aceitáveis de endividamento do que de compromissos efetivos de resultado”, acrescentou.