SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Vem da Amazônia um candidato a medicamento que promete mexer numa das maiores dores de cabeça da saúde pública: o acidente vascular cerebral (AVC). Não se trata de nenhum elixir da floresta, mas um derivado do sésamo, o gergelim. A mesma semente que dá sabor e textura a pratos, pães e também é usada na fabricação de óleo, agora aparece como base de um extrato padronizado, o ST-165, que reduziu lesões cerebrais em animais e está prestes a tentar a sorte em humanos.
O impacto em saúde pública de um novo medicamento capaz de atenuar os danos do AVC é tremendo. Estima-se em 400 mil o número de casos ao ano no país, com 80 mil mortes e pelo menos um terço do total com sequelas.
A ideia de proteger o cérebro depois de um AVC não é nova. Nas últimas décadas, mais de cem moléculas morreram na praia. Um esforço recente foi o nerinetide, testado em mais de 400 pacientes em 9 países da América do Norte, Europa e Ásia, e comparado com quem usou placebo. Não houve diferença entre os grupos. A lista de fracassos é longa e explica tanto a ansiedade quanto a cautela com qualquer novo candidato.
A ideia de buscar neuroprotetores nas plantas foi de Walace Gomes Leal, professor da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). “Desde os 18 anos eu estudo o cérebro, trabalhei com trauma, medula, neuroinflamação e vi que a lesão inicial de um AVC pode se expandir em até 70%, aumentando enormemente as sequelas. A ideia foi questionar se, dentro da biodiversidade amazônica, não existiriam neuroprotetores naturais capazes de evitar essa expansão”, conta.
Walace testou diferentes plantas da região, até chegar ao gergelim. “Ratos com AVC experimental tratados com o nosso fitoterápico tiveram uma diminuição grande da lesão, recuperação funcional e motora, diminuição da neuroinflamação e do estresse oxidativo.” Os efeitos preventivos também chamaram atenção: Se tratados três dias antes da indução experimental do AVC, a lesão também é menor, indicando que o óleo pode ter efeito preventivo. Agora, estamos fazendo um estudo em comunidades que se alimentam da farinha. Dessa semente para ver se o índice de AVC é menor do que na cidade, onde não se consome.”
O diferencial do ST-165 está no fato de ser um fitoterápico cujo efeito vem de um conjunto de moléculas do óleo de gergelim, em especial as lignanas. Esses compostos atuam em sinergia e produzem um efeito pleiotrópico múltiplo e diverso que inclui a redução da inflamação, da morte celular programada (apoptose) e do estresse oxidativo.
A aposta, nessa formulação inicial, é justamente preservar esse conjunto de ações em vez de isolar uma única molécula. Isso contrasta com a estratégia dos anos 1980 e 1990, quando dezenas de candidatos sintéticos foram testados para AVC. A lógica dominante na época era bloquear os receptores de glutamato, principal neurotransmissor excitatório do cérebro, porque o excesso dessa substância durante a isquemia leva à chamada excitotoxicidade: entrada dos íons sódio e cálcio em excesso no neurônio, inchaço, produção de radicais livres e morte celular em cascata.
Em animais, os bloqueadores dos receptores de glutamato até mostraram efeito neuroprotetor, mas em humanos os resultados foram terríveis, com alucinações e outros distúrbios psiquiátricos. “O glutamato é essencial para funções normais do cérebro, ele não pode ser simplesmente bloqueado”, resume Walace. A vantagem do fitoterápico, defende ele, é que não se interfere nessa neurotransmissão fisiológica: em vez disso, atua nos processos inflamatórios e oxidativos que ampliam a lesão secundária.
A validação pré-clínica, em animais, do ST-165 ficou a cargo do Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos (Cienp), em Florianópolis, sob coordenação do farmacologista João Batista Calixto. Ali, o candidato a medicamento passou por protocolos em linha com exigências regulatórias: farmacocinética (como a droga se comporta no corpo, como chega até o cérebro), segurança cardiovascular, respiratória e no sistema nervoso central, além de testes para saber se geram mutações ou se causam câncer. Dado que se trata de uma planta largamente consumida no mundo, o esperado era que esse perfil de segurança fosse adequado, o que se confirmou.
Nos testes com roedores, o ST-165 reduziu tanto o dano cerebral quanto os déficits funcionais. O volume de infarto foi cerca de 40% menor, e os bichos apresentaram melhora de cerca de 30% nos escores neurológicos, indicando maior preservação de funções motoras e sensoriais. No teste da fita adesiva, usado para avaliar a percepção tátil e a coordenação, os animais tratados removeram o adesivo mais rápido do que os controles.
OMesmo assim, os resultados animaram. “Nós vimos redução da inflamação, preservação de neurônios e marcadores moleculares compatíveis com neuroproteção. Isso dá uma sensação mais segura de que há efeito, mas ainda é cedo para saber se se traduzirá em benefício clínico para humanos”, pondera. “Falta apenas um estudo de segurança de longo prazo em animais para que se possa pedir à Anvisa o aval para a fase clínica. Se não for feito, o projeto trava. Mas tudo indica que será seguro.”
Metade dos R$ 3,6 milhões investidos até então no desenvolvimento inicial vieram da Embrapii, a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial, organização social vinculada ao governo federal que financia projetos de inovação e conecta centros de pesquisa e empresas. Do restante, parte ficou por conta da Neuroprotect, que ainda contou com aporte privados, e outra parte, em serviços e recursos, por conta do Cienp. Em meio a percalços financeiros, o projeto caminhou.
Agora, a startup busca investidores para viabilizar os próximos passos. O medicamento pode levar até anos para ser testado e eventualmente lançado. “Mas já no próximo ano pretendemos lançar um nutracêutico preventivo, usando a mesma matéria-prima. É um caminho comum: primeiro o suplemento, depois o fármaco”, explica Leal.
O plano é que o suplemento ajude a manter a empresa enquanto o medicamento segue seu caminho regulatório. Para viabilizar a fase clínica, que pode custar entre R$ 10 e 15 milhões, será preciso uma farmacêutica parceira ou um investidor de peso disposto a compartilhar o risco para depois aferir eventual ganho
Para os médicos, a cautela é a palavra de ordem. A neurologista Gisele Sampaio, estudiosa do AVC e que lidera estudos clínicos na área neurológica no Einstein Hospital Israelita, acompanha o tema com atenção. “Hoje, no AVC isquêmico, a base do tratamento é abrir o vaso [que ficou obstruído] com remédio ou cateter. Isso melhora muito o prognóstico, mas mesmo assim muitos pacientes ficam com sequelas. A ideia de associar um neuroprotetor é antiga e necessária.”
O salto decisivo será provar benefício no AVC em humanos, etapa que pode redefinir o campo da neuroproteção após décadas de decepções. Como resume Calixto, “o objetivo não é tratar rato, é tratar gente.” E se os primeiros ensaios clínicos confirmarem os sinais vistos em animais, uma coisa é certa: investidores não vão faltar.