SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Miriam Mehler, 90, tem muitas histórias para contar sobre a vida nos palcos. São narrativas felizes e também dramáticas, que abrangem sete décadas de carreira artística, sem planos para aposentadoria.
“Estou aqui e não quero parar de raciocinar, não quero parar de aprender. Se é para parar, prefiro morrer”, diz a atriz, em cartaz até domingo (28), no Itaú Cultural, com o espetáculo “Sob o Céu de Paris”, escrito por Gabriela Rabelo e dirigido por Gabriel Fontes Paiva.
Na peça, a degradação provocada pelo Minhocão na região central de São Paulo é um paralelo para conflitos familiares, sem que os laços afetivos deixem de existir. Temas como o racismo, a violência da ditadura militar, o envelhecimento e a morte são abordados durante a visita de uma neta, papel de Rosana Maris, aos avós, papel de Mehler e Walter Breda.
O cenário formado por calendários faz com que memórias sejam remexidas e tragam à tona as dores e as alegrias dos personagens.
Algo parecido acontece com quem tem a oportunidade de conversar com Mehler e ouvir os diversos acontecimentos marcantes de sua linha do tempo.
Formada pela Escola de Arte Dramática em 1957, a atriz estreou no Teatro de Arena com a antológica “Eles Não Usam Black-Tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, atuou no Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, e no Teatro Oficina.
Conviveu com Antunes Filho, Zé Celso e Nelson Rodrigues, entre outros grandes nomes da dramaturgia brasileira. Foi dona de teatro, fez novelas, alguns filmes, casou três vezes e lida com a dor de ter perdido o único filho, Rodrigo, morto aos 21 anos em um acidente de carro, em 1990.
“Miriam é uma espécie de dicionário do teatro paulista”, escreve William Pereira, que a dirigiu em duas peças, em depoimento para a biografia escrita por Vilmar Ledesma para a Coleção Aplauso.
“A história dela se confunde com a do teatro brasileiro”, diz Paiva, diretor de “Sob o Céu de Paris”. Segundo ele, a artista está sempre disposta para a atuação e ensina a todos com a energia que possui.
A atriz enfrentou resistência familiar para seguir no teatro. O pai, Karl, que deixou a Alemanha para fugir do nazismo, preferia ver a filha formada em direito.
“Naquela época a gente tinha uma carteirinha cor-de-rosa de profissional de diversões públicas”, ela lembra ao contar que o ofício era confundido com prostituição. “Agradeço meu pai. Porque na vida profissional enfrentamos muitos obstáculos. Viver de teatro não é fácil”, compara, destacando que foi importante aprender a resistir desde cedo.
Entre os percalços enfrentados estão as viagens entre São Paulo e Rio para conciliar trabalhos na televisão e peças em cartaz, a falta de dinheiro e conforto e até o risco de violência sexual durante um laboratório no Oficina para a montagem da peça “Andorra”, de Max Frisch, encenada em 1964.
A atriz conta que Zé Celso a colocou no centro do palco e pediu para dois figurantes simularem uma curra, como era chamado o estupro coletivo na época. “Mas eles queriam dar uma curra de verdade. Você não pode imaginar o que estrebuchei”, diz, ainda horrorizada com a experiência.
Mehler foi salva pela atriz e diretora Célia Helena, que espantou os figurantes com um guarda-chuva ao perceber a violência contra a amiga, já com as roupas rasgadas. Segundo ela, o diretor aproveitou a experiência para criar a cena. Sob xingamentos, ela se arrastava pelo chão durante o espetáculo. Resultado era aplaudida toda noite.
A parceria com Antunes Filho foi produtiva, mas também teve pedras no caminho. “Ele me assustava muito com aqueles gritos. E ensaiava muito. Começávamos à tarde e só parávamos na alta madrugada, era muito cansativo”, relata.
Ela atuou em “As Feiticeiras de Salém”, de 1961, de Arthur Miller, dirigida por Antunes, e em “Bonitinha, mas Ordinária”, de 1974, que também produziu.
Precisou batalhar pelo texto de Nelson Rodrigues no órgão de censura da ditadura. Negociou cortes e os repassou para a direção. Nessa época, recebia telefonemas diários do dramaturgo, em plena madrugada. “Minha musa, quanto deu hoje?”, perguntava Rodrigues sobre a bilheteria do espetáculo.
Mehler fundou o Teatro Paiol ao lado do então marido, o ator Perry Salles, pai de seu filho Rodrigo, no final da década de 1960. Os dois mantiveram o espaço na rua Amaral Gurgel, ao lado do Minhocão, durante dez anos. Depois, o teatro passou a ser administrado por Paulo Goulart e Nicette Bruno.
“Alguns dos buracos nas paredes fui eu que fiz”, diz sobre a estratégia para melhorar a acústica. “Mas tem coisas que ficam no passado”.
Quando entregou o Paiol para os colegas de profissão, passou por um período difícil. “Ninguém me chamava para trabalhar. Meu telefone absolutamente não tocava”.
Com o filho pequeno para sustentar, decidiu vender cursos de inglês e foi bem-sucedida. Também começou a dar aulas de teatro e, aos poucos, voltou aos palcos.
Na TV, interpretou a mocinha Ângela na novela “Redenção”, em 1966, da TV Excelsior, que teve 596 capítulos e ficou dois anos no ar. O papel foi responsável pela conquista da popularidade, com direito à tradicional confusão entre personagem e atriz nas ruas.
Nessa época, a atriz recebeu um pedido para denunciar a morte de um estudante pela ditadura em Belo Horizonte. Deu o recado durante uma entrevista na TV e sofreu as consequências.
“Imediatamente fecharam a televisão, foi um corre-corre, veio o Dops, eu fui fichada”, diz. Estava em cartaz com “Os Pequenos Burgueses” e viu homens armados na frente do teatro.
Hoje, revela sentir horror por figuras como os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e dos Estados Unidos, Donald Trump, além do primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu.
“Sou judia, mas tenho vergonha desse homem”, diz sobre Netanyahu. “Ao menos 70% do povo de Israel é contra esse homem. É uma situação horrível”, afirma, sobre as violações cometidas em Gaza.
Mehler atuou em mais de 30 novelas e teleteatros e fez 16 filmes. Mas é uma artista que se realiza nos palcos. “Teatro, para mim, é essencial”, afirma a mulher que é também uma fiel espectadora dos amigos em cena. E vice-versa.
Othon Bastos, 92, um desses amigo antigos, foi assistir a veterana no Itaú Cultural na semana em que ela completou 90 anos. Ele fez surpresa: mandou flores sem identificação, pediu sigilo e só apareceu para a atriz no final do espetáculo, em um momento de emoção para ambos.
Em “Sob o Céu de Paris”, a atriz experimenta uma novidade ao fazer parte do aquecimento diante do público. “É bom, por que não? Eu sempre me questiono: vale a pena? Se vale, está bom”.
Conta que está aberta para as oportunidades que surgirem após a temporada atual e mantém o sonho de encenar “Longa Jornada Noite Adentro”, de Eugene O’Neill, que assistiu, deslumbrada, nas interpretações de Cacilda Becker, em 1958, e de Ana Lúcia Torre, há dois anos.
“Eu sempre fico pensando: o que será que vem adiante? Alguma coisa há de vir. Eu tenho essa esperança”.
SOB O CÉU DE PARIS
– Quando Até 28 de setembro. De quinta-feira a sábado, às 20h, e domingos às 19h.
– Onde Itaú Cultural
– Preço Entrada gratuita
– Classificação 14 anos
– Autoria Gabriela Rabello
– Elenco Miriam Mehler, Walter Breda e Rosana Maris
– Direção Gabriel Fontes Paiva