SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A decisão do prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, do MDB, de pedir a rescisão, na última sexta-feira, do contrato com a Sustenidos, gestora do Theatro Municipal, expõe uma guerra ideológica que foi conflagrada, nos últimos quatro anos, num dos palcos mais importantes do país.
De um lado, a Sustenidos teve sua direção artística orientada por pautas ligadas à esquerda, envolvendo a busca por mais diversidade e a desconstrução da ópera, da música clássica e da dança contemporânea. Do outro, vereadores conservadores, aliados a Nunes, se posicionaram contra a administradora, por uma suposta doutrinação ideológica no teatro.
Existe ainda um terceiro grupo, com artistas da casa e profissionais da música clássica, que também se manifestam contra a organização social, insatisfeitos com o trabalho da direção artística e com aspectos referentes à condição dos corpos estáveis da casa.
“Quando a gente erra, também precisa falar. Era para ter encerrado o contrato em 2023, estou assumindo uma falha. O Tribunal de Contas já havia solicitado isso lá atrás, não teria por que ter levado esse contrato até agora”, afirma Nunes. “Nesse período, eu duvido que você me fale algo que o Municipal fez que tenha chamado a sua atenção. Não conseguiram trazer para a cidade um protagonismo digno de um investimento de R$ 160 milhões por ano.”
Em 2023, o Tribunal de Contas do Município, o TCM, determinou um novo edital de chamamento público, que nunca foi posto em prática. Em seu voto, o relator conselheiro Domingos Dissei lembrou aspectos que levaram à aplicação de multas à administração, como o não cumprimento de metas de produção e de economicidade.
Nunes diz ter decidido romper o contrato depois de um funcionário da Sustenidos ter comemorado o assassinato do influenciador trumpista Charles Kirk. Nas redes sociais, Pedro Guida, diretor de elenco do Municipal, republicou um vídeo de um influenciador americano que afirmava que Kirk era nazista. Procurado, Guida não respondeu à reportagem.
O deputado federal Nikolas Ferreira, do PL, chegou a protestar contra Guida. Nunes diz que a Sustenidos não atendeu o pedido da Fundação Theatro Municipal para demitir o funcionário.
Como ocorre desde 2021, quando a Sustenidos assumiu o espaço, as diretoras da organização social, Alessandra Costa e Andrea Caruso Saturnino, negaram pedidos de entrevista da reportagem. Publicaram, porém, nota em que dizem já ter afastado o profissional.
O texto diz que a decisão pela demissão não poderia ter se dado na mesma velocidade que a história se desenrolou nas redes e que a postagem não foi feita na conta do Municipal nem em nome do teatro ou da Sustenidos. Reafirma ainda apartidarismo da Sustenidos e enumera feitos como a criação do programa Municipal Circula e turnês do balé. A organização avalia medidas administrativas e judiciais para manter o contrato –eles têm 15 dias para recorrer.
Foi agedanda para esta quarta uma assembleia-geral com todos os artistas da instituição. Sobre o procedimento do TCM, a gestora diz que o questionamento é direcionado à prefeitura por uma organização que perdeu a concorrência para gerir o teatro. Se a rescisão prosseguir, Nunes disse que pode ser necessário um contrato emergencial para dar seguimento às atividades do teatro até o fim do processo de licitação. Uma versão preliminar do edital já está em consulta pública.
Toda a querela envolvendo o funcionário parece ser pretexto, porém, para uma disputa ideológica. A postagem de Pedro Guida foi mostrada ao prefeito por uma série de vereadores conservadores, insatisfeitos com a visão da organização social sobre cultura.
“A Sustenidos vem em um crescimento de sua ideologização da arte. O Municipal se tornou palco de propaganda política ideológica”, diz o vereador Adrilles Jorge, do União Brasil. Ele diz ter ligado para Nunes e conquistado maioria na Câmara dos Vereadores antes de apresentar um ofício, pedindo a rescisão do contrato.
Durante o período que administrou o Municipal, a Sustenidos promoveu montagens polêmicas, caso da recente encenação de “Don Giovanni”, de Mozart, idealizada por Hugo Possolo. Os diretores cortaram os recitativos da partitura e, no lugar, foram inseridos diálogos em português com críticas políticas. Entre esses dizeres, se destacaram as frases “respeita as mina”, “sem anistia” e comentários contra o agronegócio -nada que estivesse previsto no libreto.
Há dois anos, “O Guarani”, de Carlos Gomes, ganhou uma montagem vista como militante. Sob direção de Cibele Forjaz, o espetáculo teve a participação de indígenas, faixas de protesto pela demarcação de terras e o corte do balé. Em 2022, foi a vez do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST, ganhar o palco, na ópera “Café”, de Felipe Senna. Já em agosto, “Réquiem”, espetáculo do Balé da Cidade de São Paulo, foi acusado de satanismo durante o Festival de Joinville, em Santa Catarina.
“A Sustenidos está fazendo cultura de extrema esquerda. Os tais apartidários levaram o MST para o palco e enrolaram para demitir o Guida”, afirma a vereadora Sonaira Fernandes, do PL, que também liderou o movimento contra a Sustenidos. Questionada, ela diz que não acompanha a temporada lírica do Municipal.
A vereadora Luana Alves, do PSOL, diz que não há ideologização no Municipal e que Guida não deve ser demitido. “É um prefeito mais bolsonarista do que nunca. É um ideológico de extrema direita que prioriza direitos desses grupos. A demissão imediata geraria perigo jurídico para eles.”
Entretanto, a Sustenidos também gerou insatisfação nos próprios artistas da casa e entre os aficionados da lírica. Apesar de a montagem de obras de séculos passados não ser estanque, existem tendências quanto à encenação. Em geral, encenadores buscam respeitar os fundamentos da obra do compositor e do período na qual foi concebida. Para uma boa parte dos fãs do gênero, a visão da Sustenidos descaracterizou as obras montadas no teatro e a ópera em geral.
É o que afirmam funcionários do Municipal, que preferem não se identificar. Há avaliação de que a Sustenidos trouxe um peso ideológico exagerado, que descaracterizou obras canônicas, tornando a programação divisiva. Há queixas sobre a escolha de elenco, com cantores despreparados, e a escalação de diretores que nunca dirigiram óperas.
A Sustenidos ainda acumulou confusões com seus corpos artísticos. No início do ano, a orquestra, numa ação na Justiça do Trabalho, criticou o novo edital para contratação dos músicos, que, segundo o conjunto, ignorava o regimento interno. Em 2023, o balé denunciou sucateamento, e o coro temeu uma onda de demissões, depois que a gestora anunciou uma audição interna para avaliar a qualificação dos cantores.
A atual crise, por fim, retoma um antigo debate sobre o modelo de gestão ideal para um teatro lírico. Por ironia, Adrilles Jorges e Luana Alves, direita e esquerda, dizem preferir gestão direta do poder público.