SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A atriz Claudia Cardinale morreu nesta terça-feira aos 87 anos. A informação foi confirmada pelo agente dela, Laurent Savry, à agência de notícias AFP. A causa da morte não foi informada. Cardinale estava em Paris com seus filhos, Patrick e Claudia.

Atriz emblemática do cinema nos anos 1960, a franco-italiana, nascida na Tunísia, trabalhou com alguns dos maiores diretores de sua geração -Luchino Visconti, Federico Fellini, Richard Brooks, Henri Verneuil e Sergio Leone. “Ela nos deixa o legado de uma mulher livre e inspiradora, tanto como mulher quanto como artista”, disse seu agente à AFP.

Ao longo da carreira de quase seis décadas, se desdobrou em tipos sedutores, caso da viúva desejável do “Era Uma Vez no Oeste”, de Leone, em 1968, e da mulher ideal em “Oito e Meio”, obra memorialística de Fellini, de 1963. Também encarnou a inocência, no caso de “O Leopardo”, e a princesa de Blake Edwards em “A Pantera Cor-de-Rosa”, ambos de 1963.

Em “O Leopardo”, Cardinale vive Angelica Sedara, filha de um burguês rico que se casa com o sobrinho do Príncipe de Salina. Com seu papel, deu rosto a uma Itália efervescente, vibrante e moderna. O filme ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Em suas seis décadas de carreira e mais de cem papéis, Cardinale, porém, não cruzou o limite da nudez, preferindo sempre estimular o erotismo pela imaginação, sem tirar a roupa nos sets.

Nascida em 1938, na Tunísia, Cardinale era filha de pais de origem italiana, da região da Sicília. Era conhecida pela beleza, e foi eleita a italiana mais bela do país natal aos 17 anos pela embaixada, e por isso ganhou uma viagem para o Festival de Veneza, um dos principais eventos de cinema do mundo.

Após ir ao evento, passou a receber propostas de trabalho de muitos produtores -que, inicialmente, rejeitou, instigando ainda mais o desejo dos executivos.

Mas havia outra razão: Cardinale estava grávida e daria à luz um filho em poucos meses, Patrick. Ela nunca revelou a identidade do pai, mas disse ao jornal francês Le Monde que havia sido estuprada.

Depois, aceitaria enfim o convite do produtor Franco Cristaldi, com quem se casou e que a manteve sob contrato por 18 anos. Com ele, Cardinale foi aos poucos lançada como uma resposta da Itália à grandeza de Brigitte Bardot -mesmo sem ser fluente na língua italiana, já que havia apenas aprendido francês, árabe e o dialeto siciliano dos pais.

Tanto que, em seus primeiros trabalhos, precisava ser dublada. “Oito e Meio” foi um ponto de virada, já que Fellini insistiu em ter a voz original da atriz no filme.

Como musa sob medida, eram controlados os papeis que interpretava, seus penteados, o peso, a vida social. Nessa época, o filho de Cardinale era anunciado oficialmente como seu irmão mais novo, enquanto o menino era criado pela família da atriz.

Discreta sobre sua vida pessoal, colecionou rumores do seus casos amorosos com astros como Steve McQueen, Jean-Paul Belmondo e Delon, mas confirmou ter rejeitado uma aproximação de Marlon Brando, um ídolo dela na época em que trabalhou em Hollywood.

Separou-se de Cristaldi em 1975 e, então, conhece o diretor Pasquale Squitieri, que ela lembrava como o grande amor de sua vida. Nunca se casaram formalmente, mas permaneceram juntos até a morte do cineasta, em 2017. Juntos, tiveram a filha, Claudia.

Cardinale ascendeu num momento em que a Europa preenchia as telas do mundo com divas que tinham talento e complexidade equiparáveis à sua beleza e elegância, como Sophia Loren, Monica Vitti e Gina Lollobrigida, suas compatriotas, e Brigitte Bardot, Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, estas francesas.

Ao emprestar rosto e corpo a cineastas gigantes e contracenando com nomes como Burt Lancaster e Alain Delon, ela estampou o movimento de transformação pelo qual passava o cinema europeu, que naquela década se tornava mais autoral.

De um lado, o neorrealismo italiano levava suas musas para o centro dos problemas sociais do país; de outro, a nouvelle vague francesa as impelia a romper com os padrões vigentes na indústria.

Assim, a Europa se tornava o centro do debate cinematográfico, o que mais tarde influenciaria toda uma geração de cineastas hollywoodianos e, por consequência, mudaria a forma como os americanos enxergavam as suas próprias atrizes.

Com Cardinale e tantas outras, elas passariam, também, a encarnar papéis mais densos e independentes, que rejeitavam o padrão “pin-up” representado por Marilyn Monroe e Jayne Mansfield. Foi uma geração que não abandonou a sensualidade, mas que soube fazer dela apenas uma entre as várias camadas de suas personagens e de suas figuras públicas.

Assim, Cardinale se tornou figura mitológica do cinema, capaz de capturar o clima de transformação que tomava não só a produção cultural, mas toda a sociedade europeia da época. Sua geração ainda alimentava o desejo masculino, claro, mas não como mero acessório -eram atrizes que ocupavam o centro das narrativas, dentro e fora das telas, abraçando suas contradições.

Sua influência na cultura ao longo das décadas também pôde ser vista em personagens como Claudia de “Entrevista com o Vampiro” -Claudia era um apelido da filha da autora, Anne Rice, por usar um penteado que a remetia à italiana. Ainda na literatura, inspirou o livro “Diálogos e Fotografias”, de Alberto Moravia, que combinava textos dele e imagens da estrela ao longo dos anos. A menção às “Cardinales bonitas” na letra de “Alegria, Alegria”, de Caetano Veloso, também é referência à estrela.

A atriz teve diversas passagens pelo Brasil. Dentre elas, em 2012, recebeu o prêmio Leon Cakoff durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo pelo conjunto da obra no encerramento do evento. À época, estrelou “O Gebo e a Sombra”, do centenário diretor português Manoel de Oliveira.

Décadas antes, em 1967, veio ao país para rodar “Uma Rosa Para Todos”, de Franco Rossi. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2012, lembrou ainda das caóticas filmagens na Amazônia de “Fitzcarraldo”, de 1982, um dos projetos mais ambiciosos de Werner Herzog.

“Foi a maior aventura da minha vida. Filmava com centenas de índios seminus, que me deram vários presentes. Quando voltei para a Amazônia, anos depois, precisei dançar duas horas com eles… ainda seminus”, disse, às gargalhadas.

Cardinale recebeu diversos prêmios honorários nos festivais de cinema de Veneza, Berlim e em outros espaços internacionais importantes. Em 2017, em Cannes, uma foto sua estampou o pôster do evento, mas despertou polêmica após suas coxas terem sido afinadas digitalmente na imagem.

Ela também foi embaixadora da Unesco para os direitos da mulher.