SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Especialistas em Transtorno do Espectro Autista (TEA) afirmam que a associação feita pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, entre autismo e o uso de paracetamol por gestantes não tem base científica conclusiva. A Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) reforça que o medicamento é seguro e que tratar dor e febre na gravidez é essencial para a saúde da mãe e do bebê.

Segundo a entidade, não há evidências de que o paracetamol, princípio ativo do Tylenol, cause autismo. Alguns estudos apontam associações estatísticas, mas não comprovam relação de causa e efeito. A associação Autistas Brasil repudiou as declarações de Trump e destacou que o aumento de diagnósticos nas últimas décadas reflete maior acesso à avaliação, e não uma epidemia.

Um estudo publicado na revista Jama Network em 2024 analisou 2,4 milhões de crianças nascidas na Suécia entre 1995 e 2019, das quais 185.909 (7,5%) foram expostas ao paracetamol durante a gestação. Modelos iniciais sugeriram pequeno aumento do risco de autismo, TDAH e deficiência intelectual, mas, ao comparar irmãos da mesma família, não houve associação significativa.

Ao comparar bebês expostos ao paracetamol com seus próprios irmãos não expostos, a pesquisa constatou que crianças cujas mães usaram paracetamol durante a gravidez não apresentaram maior risco de autismo em relação aos irmãos nascidos de uma gravidez sem uso de paracetamol.

“Comparar irmãos ajuda a reduzir a influência de diferenças genéticas e ambientes”, explica Vinicius Barbosa, psiquiatra especialista em transtornos do desenvolvimento infantil e coordenador do subnúcleo de Autismo do Hospital Sírio-Libanês.

Uma revisão que combina múltiplos estudos sobre autismo, publicada este ano pelo Mount Sinai na revista BMC (do mesmo grupo editorial da Nature), indica um possível aumento do risco de transtornos do neurodesenvolvimento, mas não estabelece causa e efeito, por se tratar de uma pesquisa observacional.

Barbosa ressalta que desafios desse tipo de pesquisa incluem confundir o efeito do medicamento com a condição que motivou seu uso, medir de forma imprecisa a exposição a medicamentos de venda livre e não considerar adequadamente fatores familiares e genéticos.

O neuropediatra Paulo Liberalesso, especialista em TEA, deficiência intelectual e TDAH, reforça que a ciência já identificou as principais causas do autismo, que não incluem o paracetamol. São elas: autismo genético, que corresponde a cerca de 97% dos casos; autismo sindrômico, quando faz parte de uma síndrome maior, como síndrome de Down ou do X frágil; e autismo lesional, causado por lesões cerebrais no feto decorrentes de infecções virais ou toxoplasmose durante a gestação.

“Mesmo que alguns medicamentos aumentassem levemente o risco, isso afetaria uma quantidade extremamente pequena de pessoas, enquanto a imensa maioria dos casos tem origem genética ou sindrômica”, explica Liberalesso.

Eura Martins Lage, da Comissão Nacional Especializada de Assistência Pré-Natal da Febrasgo, acrescenta que sociedades e agências de saúde mantêm o paracetamol como primeira opção para dor e febre durante a gestação, sempre com orientação médica.

“O paracetamol tem perfil de segurança mais bem estabelecido, mas deve-se evitar uso crônico ou indiscriminado. Gestantes devem conversar com seu obstetra antes de usar qualquer medicamento”, diz a especialista, professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).

Rodrigo Martins Leite, psiquiatra e coordenador do Programa de Psiquiatria Social e Cultural do Instituto de Psiquiatria da USP (Universidade de São Paulo), também nega qualquer evidência de que o paracetamol cause autismo.

“Estudos que apontam alguma associação são apenas correlacionais e podem refletir fatores que motivaram o uso do medicamento, como infecções maternas”, afirma.

Ele endossa as afirmações de Liberalesso de que o autismo é multifatorial, predominantemente genético, e que fatores comprovados incluem alterações genéticas, idade avançada dos pais e complicações gestacionais ou perinatais, como prematuridade, baixo peso ao nascer e infecções neonatais.

O neuropediatra e professor de pediatria da UFF (Universidade Federal Fluminense) Márcio Vasconcelos destaca que apesar da preocupação de alguns grupos com o aumento da prevalência de autismo nos últimos 20 anos, as declarações sobre o paracetamol foram apressadas.

“Achei a declaração do presidente Trump precipitada. Parece querer encontrar uma explicação rápida”, afirma o médico, que é membro do Departamento de Neurologia da SBP (Sociedade Brasileira de Pediatria). Para ele, as pesquisas atuais deixam uma ‘brecha’ para que sejam feitas mais pesquisas robustas, capazes de estabelecer ou descartar relação de causa e efeito.

ESPECIALISTAS E ENTIDADES INTERNACIONAIS TAMBÉM NEGAM ASSOCIAÇÃO

Giacomo Vivanti, professor associado e coordenador do Programa de Detecção e Intervenção Precoce do AJ Drexel Autism Institute, da Universidade Drexel, nos EUA, também destaca que não é possível concluir que o autismo seja causado pelo uso de paracetamol durante a gravidez. Ele alerta que declarações como a do presidente Trump podem gerar confusão sobre o que a ciência realmente mostra e reduzir a confiança da população em profissionais de saúde, pesquisadores e instituições.

“Uma vez que a desinformação se espalha, é difícil corrigi-la. Pais podem recorrer a terapias alternativas ineficazes ou inseguras em vez de apoios comprovados”, afirma.

Agências de saúde da União Europeia, do Reino Unido e a OMS também confirmaram a segurança do paracetamol na gestação, ressaltando que evidências de qualquer ligação permanecem inconsistentes. No Brasil, o Ministério da Saúde classificou como infundadas as informações que associam autismo ao medicamento, alertando que isso pode gerar pânico, prejudicar a saúde de mães e filhos e levar à recusa de tratamento em casos de dor e febre.