SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Morreu nesta terça-feira (23), aos 87 anos, a atriz Claudia Cardinale. A informação foi confirmada por seu agente, Laurent Savry, à agência de notícias AFP. Não há detalhes sobre a causa da morte, embora familiares tenham dito que ela estava em Paris com seus dois filhos.
Atriz emblemática do cinema nos anos 1960, a ítalo-francesa, nascida na Tunísia, trabalhou com diretores como Luchino Visconti, Federico Fellini, Richard Brooks, Henri Verneuil e Sergio Leone. “Ela nos deixa o legado de uma mulher livre e inspiradora, tanto como mulher quanto como artista”, disse seu agente à AFP.
Uma das grandes musas do cinema italiano, Cardinale ficou conhecida por filmes como “O Leopardo”, dirigido por Visconti em 1963, e “Era Uma Vez no Oeste”, este de Leone, lançado em 1968. As obras deram amplo reconhecimento internacional à atriz.
Em “O Leopardo”, o filme mais emblemático de sua carreira, Cardinale interpretou Angelica Sedara, filha de um burguês rico que se casa com o sobrinho do Príncipe de Salina. Com seu papel, deu rosto a uma Itália efervescente, vibrante e moderna. O filme ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes.
Ao longo da carreira de quase seis décadas, se desdobrou em tipos sedutores, caso da viúva desejável de “Era Uma Vez no Oeste” e da mulher ideal de “Oito e Meio”, obra memorialística de Federico Fellini. Também encarnou a inocência, no caso de “O Leopardo” e “A Pantera Cor-de-Rosa”, este também de 1963.
Cardinale não cruzou o limite da nudez, preferindo sempre estimular o erotismo pela imaginação, sem tirar a roupa nos sets. Justamente por isso, criou com Monica Bellucci, outra musa italiana de sua geração, um desenho de saia justa, mais colada ao corpo.
Nascida na Tunísia, Cardinale era filha de pais de origem italiana. Era conhecida pela beleza, e foi eleita a italiana mais bela da Tunísia aos 17 anos pela embaixada do país. Por isso, ganhou uma viagem para o Festival de Veneza, um dos maiores eventos do calendário cinematográfico mundial.
Após o evento, passou a receber propostas de trabalho de muitos produtores -que, inicialmente, rejeitou, instigando ainda mais o desejo dos executivos. Mas havia outra razão. Cardinale estava grávida e daria à luz um filho em poucos meses. Ela nunca revelou a identidade do pai, mas disse a uma revista francesa que foi estuprada.
Depois, aceitaria enfim o convite do produtor Franco Cristaldi, com quem se casou e que a manteve sob contrato por 18 anos. Com ele, Cardinale foi aos poucos lançada como uma resposta da Itália à grandeza de Brigitte Bardot. Como musa sob medida, eram controlados os papéis que ela interpretava, além de penteados, o peso, a vida social.
Por isso, o filho de Cardinale foi anunciado oficialmente como seu irmão mais novo, enquanto o menino era criado pela família da atriz.
Cardinale ascendeu num momento em que a Europa preenchia as telas do mundo com divas que tinham talento e complexidade equiparáveis à sua beleza e elegância, como Sophia Loren, Monica Vitti e Gina Lollobrigida, suas compatriotas, e Brigitte Bardot, Catherine Deneuve e Jeanne Moreau, estas francesas.
Ao emprestar rosto e corpo a cineastas do cacife de Fellini, Leone e Visconti, a atriz estampou o movimento de transformação pelo qual passava o cinema europeu, que naquela década se tornava mais autoral. De um lado, o neorrealismo italiano levava suas musas para o centro dos problemas sociais do país; de outro, a nouvelle vague francesa as impelia a romper com os padrões vigentes na indústria.
Assim, a Europa se tornava o centro do debate cinematográfico, o que mais tarde influenciaria toda uma geração de cineastas hollywoodianos e, por consequência, mudaria a forma como os americanos enxergavam as suas próprias atrizes.
Com Cardinale e tantas outras, elas passariam, também, a encarnar papéis mais densos e independentes, que rejeitavam o padrão “pin-up” representado por Marilyn Monroe e Jayne Mansfield. Foi uma geração que não abandonou a sensualidade, mas que soube fazer dela apenas uma entre as várias camadas de suas personagens e de suas figuras públicas.
Assim, Cardinale se tornou figura mitológica do cinema, capaz de capturar o clima de transformação que tomava não só a produção cultural, mas toda a sociedade europeia da época. Sua geração ainda alimentava o desejo masculino, claro, mas não como mero acessório -eram atrizes que ocupavam o centro das narrativas, dentro e fora das telas, abraçando suas contradições.
Cardinale passou algumas vezes pelo Brasil. Numa dessas visitas, em 2012, recebeu o prêmio Leon Cakoff durante a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, pelo conjunto da obra. À época, estrelou “O Gebo e a Sombra”, do centenário diretor português Manoel de Oliveira.
Décadas antes, em 1967, veio ao país para rodar “Uma Rosa para Todos”, de Franco Rossi. Em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2012, lembrou ainda das caóticas filmagens na Amazônia de “Fitzcarraldo”, de 1982, um dos projetos mais ambiciosos de Werner Herzog.
“Foi a maior aventura da minha vida. Filmava com centenas de índios seminus, que me deram vários presentes. Quando voltei para a Amazônia, anos depois, precisei dançar duas horas com eles… ainda seminus”, disse, às gargalhadas.
Cardinale recebeu diversos prêmios honorários, em festivais como os de Veneza e Berlim. Foi ainda embaixadora da Unesco para os direitos da mulher.
A atriz mantinha a vida pessoal em discrição. Além do filho que teve na adolescência, teve outra mais tarde, com o diretor Pasquale Squitieri.