SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na Assembleia-Geral das Nações Unidas foi recheado de críticas aos Estados Unidos e ao governo de Donald Trump, muito embora sem que eles tenham sido citados diretamente.

O republicano falou logo depois do brasileiro, e assistiu à fala de Lula em uma sala reservada antes de subir ao púlpito da organização. Os dois se cumprimentaram brevemente entre discursos e combinaram se de reunir.

Leia abaixo menções indiretas do discurso de Lula aos EUA e a medidas de Trump.

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“O multilateralismo está diante de nova encruzilhada.”

Trump retirou os Estados Unidos de instituições multilaterais como a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Acordo de Paris sobre clima, e tem adotado medidas unilaterais como tarifas comerciais.

“Atentados à soberania, sanções arbitrárias e intervenções unilaterais estão se tornando a regra.”

Governo Lula tem usado esses termos para se referir às tentativas do governo Trump de interferir no julgamento e na condenação do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) com imposição de tarifas comerciais e sanções.

“Quando a sociedade internacional vacila na defesa da paz, da soberania e do direito, as consequências são trágicas.”

Pode se referir tanto ao bloqueio dos EUA de resoluções na ONU contra Israel pelo conflito em Gaza quanto às investidas contra o Brasil.

“Em todo o mundo, forças antidemocráticas tentam subjugar as instituições e sufocar as liberdades. Cultuam a violência, exaltam a ignorância, atuam como milícias físicas e digitais, e cerceiam a imprensa.”

Governo Trump tem deportado alunos e acadêmicos que se manifestam em defesa da Palestina e imposto restrições à imprensa.

“Não há justificativa para as medidas unilaterais e arbitrárias contra nossas instituições e nossa economia. A agressão contra a independência do Poder Judiciário é inaceitável. Essa ingerência em assuntos internos conta com o auxílio de uma extrema direita subserviente e saudosa de antigas hegemonias.”

Menções às medidas de Trump para pressionar o Brasil em relação a Bolsonaro.

“[Bolsonaro] Foi investigado, indiciado, julgado e responsabilizado pelos seus atos em um processo minucioso. Teve amplo direito de defesa, prerrogativa que as ditaduras negam às suas vítimas.”

Diversas autoridades do governo Trump e o próprio presidente têm afirmado que Bolsonaro é vítima de perseguição política e que seu julgamento não foi justo.

“Diante dos olhos do mundo, o Brasil deu um recado a todos os candidatos a autocratas e àqueles que os apoiam: nossa democracia e nossa soberania são inegociáveis. Seguiremos como nação independente e como povo livre de qualquer tipo de tutela.”

A condenação de Bolsonaro pelo Supremo Tribunal Federal (STF) seria prova da resistência do Brasil diante das tentativas de ingerência de Trump.

“[A democracia] perde quando fecha suas portas e culpa migrantes pelas mazelas do mundo.”

Trump implementa uma política linha-dura contra a imigração e faz campanha de deportações em massa.

“A comunidade internacional precisar rever as suas prioridades: reduzir os gastos com guerras e aumentar a ajuda ao desenvolvimento”

Trump desmantelou a Usaid, agência internacional de financiamento ao desenvolvimento.

“Definir padrões mínimos de tributação global, para que os super-ricos paguem mais impostos que os trabalhadores”

Governo americano sabotou negociação de tributação global no âmbito da OCDE.

“As plataformas digitais trazem possibilidades de nos aproximar como jamais havíamos imaginado. Mas têm sido usadas para semear intolerância, misoginia, xenofobia e desinformação.”

Governo Trump classifica combate à desinformação como censura, e o americano baixou um decreto em seu primeiro dia no cargo proibindo medidas para coibir desinformação.

“A internet não pode ser uma ‘terra sem lei’. Cabe ao poder público proteger os mais vulneráveis. Regular não é restringir a liberdade de expressão. É garantir que o que já é ilegal no mundo real seja tratado assim no ambiente virtual. Ataques à regulação servem para encobrir interesses escusos e dar guarida a crimes, como fraudes, tráfico de pessoas, pedofilia e investidas contra a democracia.”

Governo Trump se opõe ferrenhamente a regulação de internet, que classifica de censura, e baixou inúmeras medidas para inibir tentativas de regular. Regulação das big tech é uma das justificativas da Casa Branca para a investigação da Seção 301 do Brasil, e Trump ameaça retaliar UE por sua legislação.

“Também enviamos ao Congresso Nacional projetos de lei para fomentar a concorrência nos mercados digitais e para incentivar a instalação de data centers sustentáveis.”

Big tech e governo americano se opõem à proposta de nova legislação concorrencial para as plataformas no Brasil.

“Para mitigar os riscos da inteligência artificial, apostamos na construção de uma governança multilateral em linha com o Pacto Digital Global aprovado neste plenário no ano passado.”

Apesar de ter assinado o Pacto Digital Global no governo Biden, os EUA se opõem a qualquer iniciativa global ou nacional de regras de segurança em IA, por entenderem que atrasam desenvolvimento da tecnologia e colocam o país em desvantagem em relação à China

“É preocupante a equiparação entre a criminalidade e o terrorismo. A forma mais eficaz de combater o tráfico de drogas é a cooperação para reprimir a lavagem de dinheiro e limitar o comércio de armas. Usar força letal em situações que não constituem conflitos armados equivale a executar pessoas sem julgamento.”

EUA têm atacado embarcações venezuelanas no mar do Caribe, dizendo se tratar de tráfico de drogas, e afirmam que tem jurisdição para tal, ao equiparar narcotráfico a terrorismo. País ameaça enviar forças armadas para combater tráfico em países da América Latina.

“Outras partes do planeta já testemunharam intervenções que causaram danos maiores do que se pretendia evitar, com graves consequências humanitárias.”

Pode ser menção a tentativas dos EUA de derrubar líderes (mudança de regime) em países como o Iraque.

“E é inadmissível que Cuba seja listada como país que patrocina o terrorismo.”

EUA incluem o país em lista de patrocinadores de terrorismo, o que implica diversas sanções.

“O recente encontro no Alasca despertou a esperança de uma saída negociada.”

Brasil vê com bons olhos ideia de Trump de solução negociada na Ucrânia.

“Mas nada, absolutamente nada, justifica o genocídio em curso em Gaza. Ali, sob toneladas de escombros, estão enterradas dezenas de milhares de mulheres e crianças inocentes. Ali também estão sepultados o Direito Internacional Humanitário e o mito da superioridade ética do Ocidente. Esse massacre não aconteceria sem a cumplicidade dos que poderiam evitá-lo.”

EUA negam que há genocídio em Gaza. Considera-se que são o único país com ascendência sobre Israel para forçar o governo Netanyahu a fechar um acordo de paz, mas não o faz.

“Expresso minha admiração aos judeus que, dentro e fora de Israel, se opõem a essa punição coletiva.”

Governo Trump tem ameaçado e punido americanos, inclusive judeus, que se manifestam contra as ações de Israel em Gaza.

“Só sobreviverá com um Estado independente e integrado à comunidade internacional. Esta é a solução defendida por mais de 150 membros da ONU, reafirmada ontem, aqui neste mesmo plenário, mas obstruída por um único veto.”

EUA vetaram resolução da ONU sobre o Estado palestino.

“É lamentável que o presidente Mahmoud Abbas tenha sido impedido pelo país anfitrião de ocupar a bancada da Palestina nesse momento histórico.”

EUA vetaram a entrada de Abbas nos EUA para participar da Assembleia Geral, desrespeitando o acordo-sede assumido ao serem anfitriões da reunião.

“A COP30, em Belém, será a COP da verdade. Será o momento de os líderes mundiais provarem a seriedade de seu compromisso com o planeta.”

Presidente Trump não vai à COP, tirou os EUA do Acordo de Paris e incentiva combustíveis fósseis.

“Poucas áreas retrocederam tanto como o sistema multilateral de comércio. Medidas unilaterais transformam em letra morta princípios basilares como a cláusula de Nação Mais Favorecida.”

EUA, desde o governo Obama, bloqueiam a escolha de juízes para o Órgão de Apelações da OMC, paralisando a instituição, e Trump desrespeita regras da OMC sobre tarifas unilaterais.

“No futuro que o Brasil vislumbra, não há espaço para a reedição de rivalidades ideológicas ou esferas de influência.”

Brasil acusa Trump de querer reforçar a América Latina como seu quintal e rechaçam sua disputa por influência com a China.

“Precisamos de lideranças com clareza de visão, que entendam que a ordem internacional não é um ‘jogo de soma zero’.”

Trump é frequentemente acusado de fazer uma política externa transacional, de “soma zero”.