SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Na última semana, dois novos trabalhos publicados em periódicos médicos de alto impacto expandiram as possibilidades da semaglutida, medicamento usado contra obesidade e diabetes e vendido sob diferentes marcas: Ozempic e Rybelsus (para diabetes) e Wegovy (para obesidade).
Na revista The Lancet, foi mostrado que uma dose injetável semanal de 7,2 mg garante perda de peso adicional em relação à dose atualmente aprovada de 2,4 mg 18,7% contra 15,6%. Os pacientes com a dose tripla também eram mais propensos a ter perdas de peso maiores, com 40% eliminando 25% ou mais do peso inicial.
“Quando a gente olha para todos os análogos do GLP-1, e essa medicação [a semaglutida] faz parte dessa classe, o efeito é dose dependente. Então, quanto maior a dose, maior a eficácia. A dúvida era se a gente tinha chegado a um platô com 2,4 mg. O STEP UP [o novo estudo] mostrou que não”, diz Priscilla Mattar, diretora médica da Novo Nordisk no Brasil.
“O STEP UP mostrou que passar de 2,4 para 7,2 mg não triplica o efeito, mas acrescenta em torno de 4 pontos percentuais de perda de peso. Eu mesmo achei que ninguém toleraria essa dose, mas a imensa maioria continuou tomando, o que surpreende pela boa tolerabilidade”, afirma Bruno Geloneze, endocrinologista e professor na Unicamp (Universidade Estadual de Camoinas).
Já o estudo OASIS-4, no periódico The New England Journal of Medicine, investigou a versão oral do medicamento em dose de 25 mg e observou uma perda média de 13,6% do peso em 64 semanas, chegando a 16,6% entre aqueles que aderiram corretamente ao tratamento. Cerca de 30% dos participantes atingiram redução de 20% ou mais com a semaglutida oral. Atualmente, a versão oral só é disponibilizada para diabetes, em comprimidos de 3 mg, 7 mg e 14 mg. É a primeira vez que um medicamento oral atinge patamares de eficácia próximos aos da versão injetável.
Nos dois estudos, os pacientes eram obesos, mas não tinham diabetes, doença para a qual inicialmente foram desenvolvidas drogas dessa classe, chamada de análogos do GLP-1 (que imitam esse hormônio intestinal). Os efeitos colaterais mais comuns foram náuseas, diarreia e constipação, relatados por cerca de 70% dos participantes nas doses mais altas, contra cerca de 40% no grupo placebo. No grupo que recebeu semaglutida injetável de 7,2 mg, também houve maior incidência de disestesia (alterações na sensibilidade da pele). Apesar disso, os eventos graves foram mais raros e considerados manejáveis.
Tanto a possibilidade de ampliar a perda de peso com a injeção quanto a oferta de uma alternativa oral são comemoradas pelos médicos. “Não podemos afirmar de forma categórica que sejam equivalentes, já que não temos nenhum estudo que tenha testado no formato cabeça a cabeça as duas formas de tratamento. Dito isso, quase equivalente, em magnitude de perda de peso, é uma leitura plausível a partir dos números publicados”, diz Walmir Coutinho, professor de endocrinologia, diretor do departamento de medicina da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e ex-presidente da Federação Mundial de Obesidade.
Os médicos defendem que a existência de ambas as formulações ajuda na adaptação do tratamento a diferentes perfis. A via oral pode ser útil para pacientes que tenham medo de agulha ou dificuldade de manusear a caneta, como explica Geloneze.
Ele ressalta, no entanto, que o comprimido diário exige mais disciplina. “No geral, o paciente tende a escolher o comprimido. Mas quando você explica que o oral exige jejum antes e de pelo menos 30 minutos depois de tomar, muitos reconsideram. A escolha precisa ser compartilhada e informada.”
A expectativa da Novo Nordisk é que a ampliação de opções aumente a adesão. Para Mattar, esse movimento reflete a tendência de que o tratamento da obesidade passe a se parecer cada vez mais com o do diabetes, com um arsenal amplo de medicamentos e decisões individualizadas.
Os pedidos para novas dosagens e indicações ainda serão submetidos à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), mas o uso fora das recomendações da bula (off-label), seja de doses mais altas do injetável, seja da formulação oral aprovada apenas para diabetes, já acontece, embora não seja uma prática estimulada pela indústria, afirma Mattar.
Segundo Bruno Halpern, endocrinologista e presidente eleito da Federação Mundial de Obesidade, há uma diferença importante entre o uso off-label de medicamentos quando não há estudos ou quando se conhece o perfil de segurança e os benefícios, como no caso da semaglutida oral para obesidade. Para a semaglutida injetável de 7,2 mg e da oral em doses maiores, diz o médico, seria importante avaliar ainda a questão do custo, que poderia até triplicar, embora o efeito não aumente na mesma proporção.
Ele lembra do topiramato, medicamento mais barato que os agonistas de GLP-1, recomendado em bula para tratamento de enxaqueca, epilepsia e outras condições que tem sido usado de forma off-label contra distúrbios alimentares e obesidade. “[O uso off-label] não é algo que deve ser feito por todos os médicos, em qualquer circunstância, mas por especialistas que conheçam os estudos e que discutam [a possibilidade] com os pacientes.”
Mesmo com os avanços na seara farmacológica, apenas uma ínfima parte dos pacientes é de fato tratada. “Acreditamos que menos de 2% das pessoas com obesidade nos Estados Unidos usem algum medicamento para tratar essa doença. No Brasil, esse percentual foi estimado em apenas 3%”, relata Coutinho. “Com a perda de peso pela primeira vez igualando a expectativa de médicos e pacientes, que é de 16% a 17% de perda de peso, é provável que este cenário definitivamente mude para melhor.”
Entre os atrativos da semaglutida está também a redução na faixa de 14% a 26% (a depender do estudo e da população avaliada) de risco cardiovascular, inclusive de mortes por AVC e infarto, e também contra doença renal. Novos trabalhos sugerem impacto positivo também sobre gordura no fígado e até na progressão do Alzheimer.
A gordura no fígado já é hoje a principal causa de transplante de fígado nos Estados Unidos, o que deve também ocorrer no Brasil, conta Mattar. “Aqui ainda perde para o álcool, mas não por muito tempo. No estudo Essence, mostramos que a semaglutida reduz a evolução do quadro e também reduz fibrose.” O aval da FDA, agência regulatória americana, para a indicação da semaglutida para o tratamento da esteato-hepatite, doença inflamatória, veio no último mês de agosto.
Já com relação a Alzheimer, Mattar diz que “tudo que foi testado até agora falhou, principalmente as moléculas voltadas para substância amiloide. O que estamos estudando é diferente: a hipótese de que a inflamação crônica tenha um papel importante. Se der certo, vai ser um grande resultado, porque hoje não existe nada que mude a história natural da doença”, diz.
Mas as promessas vêm acompanhadas de obstáculos, e o mais óbvio é o acesso. O medicamento não está disponível no SUS (Sistema Único de Saúde) nem mesmo para a obesidade.
“Nos últimos anos, a gente submeteu dossiês para incorporação no SUS, mas recebemos pareceres negativos da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde) mesmo quando avaliamos populações de alto risco cardiovascular. O desafio é orçamentário, porque a obesidade é altamente prevalente. Mas eu sou otimista: a sociedade está falando, o governo está olhando. Assim como já temos programas robustos para diabetes e hipertensão, acredito que vamos chegar lá também na obesidade”, afirma a diretora da Novo Nordisk
Segundo ela, experiências estaduais em Goiás e no Rio de Janeiro podem abrir caminho para incorporar o tratamento em situações mais delimitadas.
Outro tema no horizonte é a propriedade intelectual. A patente da semaglutida expira em 2026 no Brasil, e a indústria, embora não abra mão de brigar pela extensão do período de exclusividade, já prepara uma nova geração de moléculas mais potentes, incluindo combinações duplas e triplas, com efeito ainda maior na perda de peso. O desafio, novamente, em meio a um mercado bilionário, será disponibilizar essas inovações para quem precisa mas não pode pagar.