BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – O desembargador Flávio Jardim, do TRF-1 (Tribunal Regional Federal da 1ª Região), deu no último dia 6 decisão em ação envolvendo o bilionário mercado das canetas emagrecedoras mesmo tendo atuado como advogado para uma das partes, há dois anos, e em causa idêntica à que agora julgou.
A decisão de Jardim, adotada em um sábado, suspendeu uma liminar que havia sido obtida pela dinamarquesa Novo Nordisk, atendendo a pedido feito 48 horas antes pela brasileira EMS, farmacêutica para quem o agora juiz advogou até 2023.
A briga judicial trata da ampliação da patente de caneta usada para diabetes e emagrecimento.
A empresa estrangeira pediu para Jardim se declarar suspeito. O magistrado disse nos autos que embora tenha trabalhado como advogado em ação com o mesmo teor, no caso presente ele não atuou.
À reportagem, Jardim afirmou que a Novo Nordisk tenta desviar o debate. “Eles estão insistindo numa tese que o Supremo Tribunal Federal já julgou [extensão de patente]. Estão agora querendo deslocar o debate, como se o problema fosse eu”, disse.
A disputa judicial entre a Novo Nordisk e a EMS tem como pano de fundo o pleito da empresa dinamarquesa de ampliação até 2033 da validade da patente da liraglutida, base de suas canetas Victoza e Saxenda -e também das versões sintéticas produzidas pela EMS, Olire e Linux.
O argumento é o de que houve excessivo tempo de análise da patente, o que diminuiu drasticamente o período que a empresa poderia comercializar o produto com exclusividade no mercado nacional.
A ideia da farmacêutica dinamarquesa é utilizar a mesma argumentação para defender a prorrogação da patente da semaglutida, princípio ativo de produtos mais valiosos, como Wegovy e Ozempic. A proteção comercial desta molécula cai em março de 2026 e a EMS já pediu para a Anvisa o registro de um genérico.
O desembargador Flávio Jardim representou o grupo FarmaBrasil no julgamento do STF (Supremo Tribunal Federal) que, em 2021, declarou inconstitucional um trecho da legislação que permitia proteger os produtos por mais de 20 anos se houvesse demora na analisar das patentes.
Jardim tomou posse no TRF-1 em março de 2024. Ele ocupou uma das vagas reservadas à advocacia. Na decisão do último dia 6 ele suspendeu liminar da primeira instância em favor da Novo Nordisk.
“Se essas teses prevalecessem, este relator seria suspeito para julgar qualquer processo no qual figure o Distrito Federal como parte, já que fui Procurador do DF durante 15 anos e defendi os interesses do ente distrital”, afirmou o desembargador.
Jardim registrou na decisão seus argumentos para eventual caso de análise de sua conduta por instâncias superiores.
“De modo a preservar a imparcialidade deste Juízo, desde logo apresento esses fatos para possibilitar aos meus pares e, possivelmente, aos tribunais superiores, examinar e eventualmente revisar a minha conclusão sobre a existência de eventual impedimento ou suspeição deste de relator para atuar em processos deste tema.”
Jardim atuou na defesa da EMS ao lado da advogada Daniela Caldas Rosa Alves Coelho, que segue no caso. O marido dela, Renato Coelho, foi colega do juiz na Procuradoria do Distrito Federal.
“A advogada é uma pessoa que é esposa de um sujeito que participa do grupo de pesquisa do IDP e que, por isso, teve uma obra coletiva, salvo engano, em que a gente publicou artigos. De fato, eu o conheço. O doutor Renato é, inclusive, procurador do DF, mas isso também não é uma causa de suspeição, no meu sentir”, disse Jardim.
Em novo recurso, ainda não avaliado pelo TRF-1, a Novo Nordisk afirma que a atuação como advogado de sua concorrente não foi “genérica ou tangencial”, citando a defesa da EMS em 2023 contra a mesma empresa e em processo similar envolvendo a extensão de patente de outro modelo de caneta.
A farmacêutica ainda citou dois precedentes similares em que o magistrado se declarou suspeito.
O desembargador disse à reportagem que pode ter cometido um equívoco nesses casos anteriores. “Eu vou ser sincero, eu não me lembro [dos dois casos em que se afastou]. Eu acho que eu me equivoquei”, afirmou. O pedido de suspeição do magistrado foi revelado pelo Jota.
Jardim também afirma que a turma do TRF-1 em que ele atua já avaliou e descartou pedido anterior de suspeição por ação de outra empresa, que era representada pelos mesmo advogados. E, acrescenta, não houve recurso.
A EMS e a Novo Nordisk ainda têm trocado acusações nos documentos levados aos tribunais. Em um deles, assinado por Jardim e outros advogados em setembro de 2023, a EMS disse que os movimentos da fabricante do Ozempic têm “apelo oportunista e abusivo” e buscam prorrogar o monopólio, com a manutenção de preços extorsivos.
Já a farmacêutica dinamarquesa pede a condenação da EMS por litigância de má-fé.
Em nota, a defesa da Novo Nordisk disse que “não basta que o magistrado, em seu foro íntimo, se sinta isento, é indispensável que garantias suficientes sejam oferecidas para excluir qualquer dúvida legítima sobre a sua imparcialidade”. A EMS não quis se manifestar.