SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um estudo publicado na revista Jama Oncology aponta que a presença de certos microrganismos na boca pode aumentar em até três vezes o risco de desenvolver câncer de pâncreas, um dos tumores mais agressivos e com altas taxas de mortalidade. Os autores sugerem que o microbioma oral conjunto de bactérias, fungos e vírus presentes na boca pode servir como biomarcador não invasivo para rastreamento e prevenção da doença.
A pesquisa acompanhou 122 mil pessoas de duas grandes coortes epidemiológicas nos Estados Unidos por quase nove anos. Foram comparados 890 participantes: 445 que desenvolveram adenocarcinoma pancreático primário e 445 controles, pessoas sem câncer.
Com base em um escore de risco microbiano (MRS), elaborado a partir de 27 espécies orais, os pesquisadores observaram que a presença de determinados microrganismos aumenta significativamente a probabilidade de desenvolver o tumor. Entre eles, destacam-se a bactéria Porphyromonas gingivalis, ligada a doenças periodontais (inflamação na boca), e o fungo do gênero Candida.
O câncer de pâncreas se caracteriza pelo crescimento descontrolado de células malignas no órgão. Por ser agressivo e, geralmente, descoberto tardiamente, o tempo de sobrevida é curto na maioria dos casos. O estudo sugere que exames simples de saliva poderiam, no futuro, ajudar a identificar pessoas sob maior risco, o que permitiria um diagnóstico precoce.
No Brasil, o Inca (Instituto Nacional de Câncer) estima 10.980 novos casos anuais de câncer de pâncreas entre 2023 e 2025. A maioria dos registros corresponde ao tipo mais agressivo, adenocarcinoma, que representa cerca de 90% dos diagnósticos. Os 10% restantes são tumores neuroendócrinos, geralmente curáveis e com sobrevida mais longa.
Os fatores de risco associados ao desenvolvimento da doença incluem excesso de gordura, sedentarismo, consumo de álcool e tabagismo. Apesar disso, a maior parte dos diagnósticos não apresenta causas identificadas, segundo João Fogacci, oncologista clínico especializado em tumores do aparelho digestivo da Rede DOr.
Para ele, a forma como o estudo foi conduzido é relevante: as amostras de saliva foram coletadas antes do diagnóstico dos pacientes, o que evita distorções comuns em pesquisas que analisam pessoas já doentes. Em estudos retrospectivos, por exemplo, não dá para determinar se a bactéria ou fungo estava presente antes do câncer ou surgiu depois do início da doença. Ou seja, não se pode afirmar causa e efeito.
“O estudo prospectivo torna os resultados mais confiáveis e indica que o microbioma oral pode realmente estar ligado ao desenvolvimento do câncer de pâncreas”, explica.
Embora ainda não seja possível criar medidas preventivas concretas, identificar microrganismos de risco abre caminho para novas pesquisas sobre rastreio precoce e prevenção. Fogacci enfatiza também a relevância da higiene oral como possível fator indireto de proteção, embora não existam evidências suficientes para recomendar intervenções específicas baseadas na eliminação desses microrganismos.
No estudo, apesar de o gênero Candida ter sido associado ao aumento do risco, a espécie mais comum na cavidade oral, Candida albicans, apresentou relação com redução do risco de câncer de pâncreas.
O oncologista Oren Smaletz, do Einstein Hospital Israelita, lembra que o conjunto de microrganismos da boca já foi associado a outros tipos de tumores, como os de rim e intestino. “No caso do pâncreas, essa relação ainda é nova, pois não há ligação direta óbvia entre a boca e o órgão. Mas sabemos que a microbiota influencia a resposta imunológica do organismo, e uma imunidade comprometida pode aumentar a exposição a diferentes tipos de câncer.”
Ele ressalta que, apesar das evidências do estudo, não há impactos clínicos imediatos para os pacientes. “Para avaliar o efeito de fato, seriam necessários estudos controlados e prospectivos, nos quais se analisasse se modificar a microbiota de pacientes predispostos altera seu risco de desenvolver câncer”, afirma.
A coordenadora de Odontologia da Rede Hospital Casa, Elisa Fatorelli, explica que a boca abriga mais de 500 espécies de microrganismos, o que é normal. As infecções ocorrem quando há um desequilíbrio nesse ecossistema. Ela cita que entre os principais patógenos responsáveis por doenças periodontais está a bactéria Porphyromonas gingivalis, que foi associada ao aumento no risco de câncer de pâncreas.
“Além de prejudicar a saúde bucal, infecções crônicas na gengiva aumentam o risco de diversas condições de saúde geral, como doenças cardiovasculares, AVC, diabetes e partos prematuros. Microrganismos e mediadores inflamatórios presentes na gengiva podem entrar na corrente sanguínea e afetar outros sistemas do corpo”, afirma. Para prevenir problemas, ela recomenda visitas periódicas ao dentista e manutenção adequada da higienização oral.