SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um amontoado de códigos e caracteres segue um plano branco de modo quase desordenado, não fosse a imagem que surge conforme o corpo do observador se distancia do quadro. No conjunto de elementos gráficos rudimentares, irrompe um rosto em aparente desespero, contorcido e em prantos, de uma jovem vietnamita.
Em “A Mulher que Não é a BB”, obra de 1971 de Waldemar Cordeiro, o artista faz uso dos primeiros computadores existentes no Brasil para discutir a cultura de massa e o lugar da arte em seu tempo, tanto na forma como em seu conteúdo.
Essa obra, que fazia referência à Guerra do Vietnã e ao ícone pop Brigitte Bardot, integra o conjunto exposto na galeria Luciana Brito, na zona oeste de São Paulo. Trata-se da única mostra brasileira dedicada ao centenário de nascimento do artista ítalo-brasileiro, pioneiro da arte concreta e criador da chamada arteônica termo que cunhou ao juntar “arte” e “eletrônica”.
Além disso, a exposição marca a estreia do neto, Thomas Cordeiro, como curador da coleção familiar. Segundo ele, a fase de “computer art” do avô é a que culmina toda a sua pesquisa. Por isso, para Thomas, era fundamental dar visibilidade a esse momento, breve devido à morte do artista em 1973, mas de grande importância.
Entre 1968 e 1973, Waldemar Cordeiro acessou os raríssimos computadores do país então restritos ao Bradesco, à Universidade de São Paulo e à Unicamp. Com o físico Giorgio Moscati, transformou imagens em matrizes de pontos e linhas impressas em papel contínuo, cada uma demandando horas de processamento.
“Parte do trabalho de digitalização era feito manualmente, quadro a quadro, um processo exaustivo. É impressionante pensar na sofisticação dessas obras, feitas com recursos tão limitados”, diz Thomas.
Quanto à passagem da arte concreta à “computer art”, lembram Analivia e Thomas Cordeiro, ela não significou uma ruptura, mas um desdobramento. Para o artista, a pesquisa geométrica do concretismo já trazia embutida uma lógica estrutural que encontrou nos computadores um novo meio de se expressar.
De acordo com Analivia, seu pai nunca deixou de ser concreto, apenas levou a busca para dentro da máquina. “O que muda é o suporte, mas a lógica é a mesma”, afirma.
O interesse de Cordeiro pela tecnologia, contudo, não o afastava de suas preocupações sociais. A obra “A Mulher que Não É BB” exemplifica isso, ao contrapor um ícone da cultura pop às imagens que circulavam sobre a guerra do Vietnã.
Além disso, Analivia lembra que, ao escrever o Manifesto Arteônico em 1971, o artista já alertava para os impactos da urbanização desenfreada em São Paulo, outro ponto de inquietação em sua trajetória.
A relação com o mercado também revela o espírito radical do artista. Segundo Analivia, Cordeiro em vida nunca vendeu um trabalho por convicção política e porque ganhava a vida como urbanista, não como artista.
Chegou a planejar uma edição popular em serigrafia da série “Derivadas”, produzindo cerca de 300 exemplares de cada obra, com a intenção de assiná-los, embalá-los e distribuí-los em bancas, para que qualquer pessoa pudesse levar para casa uma obra de arte como quem leva um jornal. Morreu antes de concretizar o projeto, e os poucos exemplares existentes assinados se tornaram peças raras de museu.
O caráter visionário de sua produção, porém, não passou despercebido. Desde os anos 1960, Cordeiro integrou a cena internacional de arte e tecnologia, participando de exposições no continente europeu e nos Estados Unidos, além de dialogar em vida com nomes como o escritor Umberto Eco, o teórico Giulio Carlo Argan e o cineasta Federico Fellini.
Para Analivia, sua atualidade reside justamente na capacidade de antecipar questões que só hoje ganham centralidade. “Ele previu a digitalização da sociedade, a internet, a democratização do acesso à cultura e até a aproximação entre arte e neurologia. Olhar suas obras é perceber que ele enxergou o futuro.”
CEM ANOS DE WALDEMAR CORDEIRO
– Quando Ter. a sex., das 10 às 19h; sáb. das 11 às 17h. Até 4 de outubro
– Onde Luciana Brito Galeria – av. Nove de Julho, 5.162, São Paulo
– Preço Grátis