SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Os mosquitos Aedes aegypti que hoje atormentam a população brasileira e os moradores de muitas outras regiões tropicais pelo mundo são uma consequência do tráfico de escravizados entre os séculos 16 e 19, indica um novo estudo.
A espécie veio originalmente da África, mas os dados de DNA sugerem que foi só no continente americano que ela adquiriu plenamente as características necessárias para se tornar um vetor global de doenças entre elas, a completa simbiose com áreas urbanas e outras condições ambientais criadas pelo ser humano.
O estudo, que acaba de sair na revista especializada Science, mostra ainda que o Aedes “americanizado” acabou sendo exportado de volta para seu continente de origem, chegando perto de substituir as linhagens da espécie que nunca tinham saído da África. E os dados genômicos revelam que a resistência a inseticidas está se tornando cada vez mais comum na população do bicho, uma informação importante para a busca de novas estratégias para combatê-lo.
Coordenado por Jacob Crawford, da Verily Life Sciences (um braço de pesquisa do Google nos EUA), o trabalho reuniu uma equipe internacional de pesquisadores, entre eles Ademir Martins, do Laboratório de Fisiologia e Controle de Artrópodes Vetores da Fiocruz do Rio.
Uma das chaves para o resultado foi a grande quantidade de dados que os pesquisadores conseguiram reunir e comparar. Eles sequenciaram mais de 1.200 genomas (o conjunto do DNA) de mosquitos da espécie, oriundos de 73 localidades espalhadas pelo planeta, da Califórnia à Austrália, incluindo diversos Aedes coletados no território brasileiro entre os continentes, só não havia amostras europeias.
Existem duas grandes divisões dentro da linhagem do mosquito, designadas como subespécies. A mais antiga é a do Aedes aegypti formosus (designada pela sigla Aaf no estudo), um inseto que voa pelas florestas tropicais africanas há pelo menos dezenas de milhares de anos e é considerado um generalista. Isso significa que as fêmeas da espécie se alimentam de sangue de diversos animais, e não apenas de seres humanos.
Já o Aedes aegypti aegypti (Aaa, para encurtar) é a subespécie que se especializou em se alimentar do sangue do Homo sapiens, talvez a partir de uns 5.000 anos atrás, durante o processo de ressecamento da região onde hoje é o deserto do Saara. Esse fenômeno teria levado o inseto a se adaptar às mudanças botando seus ovos em recipientes usados pelos seres humanos para armazenar água.
Dentro das populações de Aaa, porém, existem diferenças genéticas significativas que separam as linhagens africanas que nunca deixaram o continente e a grande linhagem invasiva global, que tem sido responsável, por exemplo, por todas as grandes epidemias de febre amarela e dengue pelo menos desde o século 19.
Antes da chegada dos africanos escravizados ao continente americano, não havia mosquitos desse tipo em nenhum lugar das Américas. Tanto o inseto quanto as doenças das quais ele é vetor, entretanto, acabaram se instalando com facilidade deste lado do Atlântico, desencadeando grande mortalidade em locais como o Rio de Janeiro e a cidade americana de Nova Orleans.
O novo estudo corroborou a existência das diferenças entre as linhagens, mostrando, por exemplo, que uma população do mosquito relativamente isolada na Argentina ainda guarda semelhanças com o Aaf africano. Ela teria se separado das demais linhagens, como as do Senegal e de Angola, há cerca de 300 anos. Um século mais tarde, ancestrais dos outros mosquitos do continente americano teriam se separado dos antepassados da linhagem argentina, e é esse subgrupo que passou a funcionar como praga global do século 19 para cá, sendo provavelmente “exportado” para a Ásia a partir do comércio marítimo na região do Caribe.
A capacidade invasiva dessa nova linhagem é tamanha que, pelo menos desde os anos 1950, as antigas linhagens africanas da espécie começaram a ser substituídas pelo “Aedes globalizado” ou a se misturar com ele. E esse processo está sendo acompanhado pelo espalhamento da resistência a inseticidas.
Nas Américas, no mínimo mais de 50% dos mosquitos de cada população carrega genes que conferem proteção contra o efeito dos venenos (em alguns casos, em mais de 90% dos indivíduos), e o mesmo vale para as populações asiáticas. Na África, essas mesmas variantes genéticas estão se tornando comuns nas populações Aaf (as antigas) que receberam influxo de “imigrantes” Aaa, como as de Luanda, em Angola.
Além de reconstruir a expansão do inseto, os dados devem ajudar os pesquisadores a compreender melhor a diversidade genética da espécie e planejar estratégias para contornar a resistência a inseticidas.