SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Donald Trump é um polvo laranja de crochê que estrangula, com seus tentáculos, a Estátua da Liberdade e a Casa Branca, símbolos da democracia americana. Perto dele, um alienígena chamado “O Tecnocrata” tem acoplado a seu corpo um foguete e o carro do filme “De Volta para o Futuro” o extraterrestre não tem nome, mas a referência é o bilionário da tecnologia Elon Musk.
Os bonecos que debocham de líderes globais, criados a partir de memes e charges da internet, são parte de uma nova série da artista Rivane Neuenschwander, um dos principais nomes no cenário das artes do Brasil que é tema de uma exposição em cartaz até 2 de novembro, no Itaú Cultural, em São Paulo.
Nesta e em outras obras da mostra, um panorama dos cerca de 30 anos de carreira da artista, Neuenschwander faz uma crônica social e política do Brasil e de fatos do mundo pelo viés lúdico.
“A criança usa da brincadeira para a elaboração e resolução de seus conflitos e, se você reparar bem, algo em relação a isso tem se perdido brutalmente nos dias de hoje”, diz a artista, lembrando que o pintor Paul Klee desenvolveu personagens para explicar para seu filho Felix os acontecimentos políticos de sua época, as primeiras décadas do século 20.
“Como explicar para meus filhos a tragédia e o grotesco de um governo de extrema direita que vivemos recentemente, e, diga-se de passagem, continua à espreita?”
Chamada “Brasil de Susto e Sonho”, a mostra se estende por três andares do Itaú Cultural e reúne tanto trabalhos mais conhecidos da artista, como a série de serigrafias sobre madeira “Atrás da Porta”, de 2007, em que, como uma antena para os devaneios secretos da sociedade, ela registrou desenhos e rabiscos escritos em portas de banheiros públicos, quanto uma nova leva de obras inéditas, criadas para a exposição.
Destas, uma das principais é um vídeo deste ano, feito em parceria com Cao Hamburguer, sobre um grupo de pessoas que se vestem de animais e passeiam por comunidades ribeirinhas na cidade de Cametá, no Pará, toda terça-feira de Carnaval. As cenas dos bichos enfileirados, um atrás do outro, chegando de barco aos locais, não ficaria deslocada de um filme de Federico Fellini.
Fabiana Moraes, a curadora e organizadora da exposição, propõe entender a produção da artista mineira pelas chaves da imaginação infantil, o sonho do título da mostra, e da surpresa, algo que nos pega desavisados e sem preparo.
“O susto é você está num domingo de verão e tentam um golpe em seu país. Estava todo mundo de boa, ufa, a gente não virou uma ditadura militar”, diz Moraes, em referência aos ataques de 8 janeiro de 2023 levados a cabo por apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro. Os trabalhos de Neuenschwander, argumenta ela, reverberam no Brasil de agora.
É um Brasil de sangue, como atesta a série de pinturas inéditas “Notícia de Jornal (…)” com título de uma música de Chico Buarque, em que a artista retrata ambientes domésticos esvaziados de figuras humanas, mas com manchas de sangue na parede ou na cama. Como algumas telas têm nomes de mulher, isso é uma alusão ao alto índice de feminicídios do país.
Segundo a artista, os quadros de “Notícia de Jornal” foram inspirados em pinturas de ex-votos, em que as figuras religiosas aparecem em ambientes domésticos onde houve alguma tragédia, numa composição que traz abaixo do desenho um texto de agradecimento por um milagre.
Porém, ela remove os santos e coloca em seus lugares clarões brancos que flutuam e viram testemunhas de um crime, além de tirar da composição o texto de agradecimento. “Agradece-se ao santo por um ‘milagre’ que deveria ser apenas uma obrigação mínima do nosso estado, como educação e saúde, por exemplo”, diz.
O Brasil de Neuenschwander não está em paz. Numa nova versão da obra “Repente”, a artista colheu palavras e desenhos de protestos nas ruas e os transferiu para pequenas etiquetas, que podem ser rearranjadas pelos visitantes num grande mural dentro do museu ou presas na roupa com um alfinete e levadas embora, de volta para o espaço público.
“Ao abrir um trabalho para a intervenção alheia, ele fica muito próximo à vida. Há uma comunicação direta entre o trabalho e o público, que se vê agente de uma obra, capaz de alterar o fluxo da mesma, ao mesmo tempo em que se vê parte de um coletivo. Isso evidencia para mim uma questão política muito forte, uma vez em que vivemos em uma sociedade altamente individualizada, onde o outro é visto como um problema, um entrave ou até mesmo uma ameaça”, afirma a artista.
Neuenschwander acrescenta que se sente alegre ao ver as suas obras em situações imprevisíveis, como quando as palavras dos protestos são pregadas em um casaco e voltam às ruas, por exemplo. “Isso ainda é o trabalho acontecendo, e talvez seja o seu aspecto mais importante.”
Com idade próxima aos 60 anos e obras presentes em coleções importantes como a da Tate Modern, em Londres, a do Museu de Arte Moderna de Nova York e o acervo do Instituto Inhotim, em Minas Gerais, a artista é um nome fundamental quando se pensa em arte de temperatura política.
Diante de governos autoritários, ela argumenta, o papel da arte é “ser verdadeiramente um espaço de liberdade e experimentação”.
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BRASIL DE SUSTO E SONHO: UM PANORAMA DA OBRA DE RIVANE NEUENSCHWANDER
– Quando ter. a sáb., das 11h às 20h; dom. e feriados, das 11h às 19h, até 2.nov.
– Onde Itaú Cultural, av. Paulista, 149
– Preço Grátis
– Link: https://www.itaucultural.org.br/secoes/agenda-cultural/exposicao-de-rivane-neuenschwander-nos-convida-a-voltar-a-sonhar