SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O assassinato do ex-delegado-geral Ruy Ferraz Fontes é o caso mais recente, numa sequência de crimes e investigações, a indicar o fortalecimento do crime organizado no país. Os indícios estão no volume de dinheiro movimentado, nas denúncias –e condenações– de corrupção de agentes públicos, na infiltração na economia formal e na profissionalização dos assassinos.

A multiplicação de denúncias traz a impressão de uma mudança de patamar na atividade criminosa no Brasil. Especialistas ouvidos pela reportagem dizem que o país não pode ser considerado um “narcoestado” –termo que normalmente se refere ao controle total do poder público por traficantes de drogas–, mas ressaltam a gravidade da crise: o crime exerce domínio sobre territórios, obtém lucros com negócios que vão além do tráfico e já influencia a política, mesmo que em pequena escala.

Há cerca de um ano e meio, por exemplo, uma investigação do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) do Ministério Público de São Paulo já apontava que empresas ligadas à facção criminosa PCC (Primeiro Comando da Capital) manipulavam licitações em pelo menos 11 municípios de São Paulo, num esquema que servia tanto para financiar a facção quanto para lavar o dinheiro sujo.

Em outro assassinato com tiros de fuzil e em plena via pública –o de Antônio Vinícius Lopes Gritzbach, no aeroporto internacional de São Paulo, em Guarulhos–, as investigações apontaram para um conluio entre criminosos e policiais. O crime ocorreu a mando de líderes do PCC e foi executado por PMs da ativa, segundo a acusação. Gritzbach também era alvo de extorsões de policiais civis, que tinham como parceiros empresários ligados à facção.

Um inquérito da Corregedoria da PM apontou, ao mesmo tempo, que ao menos 14 policiais repassavam informações privilegiadas à cúpula do PCC. Entre eles havia agentes da Rota (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar), tropa de elite da PM que realiza diversas ações de combate ao crime organizado.

Investigações já apontaram atividade de facções criminosas em áreas como refino, distribuição e venda de combustíveis, mercado imobiliário, transporte privado e público, produção musical, clínicas odontológicas e diferentes serviços, como de internet, saúde, limpeza urbana e coleta de lixo. Neste ano, inquéritos apontaram uma intensificação no uso de fintechs (empresas que usam tecnologia para serviços financeiros) para lavagem de dinheiro.

“O crime organizado faz ‘vítimas inocentes e cadáveres de excelência’, dos quais o crime organizado precisa”, disse o desembargador aposentado Wálter Maierovitch, lembrando a frase do escritor italiano Leonardo Sciascia sobre a máfia. O assassinato de autoridades é um recurso de manutenção do medo, ele explica.

No Brasil, o assassinato do juiz Antonio Machado José Dias, em 2003, é considerado o primeiro ataque do crime organizado a uma autoridade do Poder Judiciário. Cinco pessoas –entre elas Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, líder máximo do PCC– foram condenadas pelo crime.

Membros do PCC também já foram apontados como autores das mortes do diretor-geral de um Centro de Detenção Provisória, de uma psicóloga que trabalhava numa penitenciária federal, de agentes penitenciários e de mais de cem policiais militares.

Entre os primeiros suspeitos na investigação do assassinato de Ferraz Fontes, na última segunda-feira, estão um homem apontado como membro do PCC e outras três pessoas que já responderam por tráfico de drogas. Ainda não há prova de envolvimento da facção no crime.

“Estamos numa federação. Podemos ter ‘narcomunicípios’, podemos ter ‘narcobairros’. A questão é que há presença muito forte do PCC em vários bairros e isso está sempre crescendo”, disse Maierovitch.

O termo narcoestado começou a ser usado a partir da década de 1980 no contexto do fortalecimento dos cartéis colombianos. Era a época do crescimento do poder do traficante internacional Pablo Escobar, que chegou a se eleger representante de Medellín no Congresso do país.

Cartéis de droga passaram a financiar campanhas políticas na Colômbia, e investigações apontaram Escobar como mandante do assassinato de um candidato favorito à presidência do país, Luís Carlos Galán.

Outro caso citado com frequência é o de Sani Bacha, que governou a Nigéria de 1993 a 1998 e morreu por overdose de heroína. Familiares de Bacha respondem por acusações de tráfico de drogas até hoje.

“O Brasil não é um narcoestado e sequer está a caminho de ser um narcoestado”, disse nesta sexta-feira (19) o secretário nacional de Segurança Pública, Mário Luiz Sarrubbo.

Ele afirma que, na última década, o poder público passou a combater o crime organizado de forma sistêmica. “Pontualmente, nós tivemos um problema aqui em São Paulo, problemas aqui e acolá, ou alguma intervenção, até mesmo na questão das eleições, mas em 40, 50 municípios. O Brasil tem mais de 5.400 municípios.”

Já Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, afirma que a captura de mercados formais por facções criminosas é um problema mais próximo da realidade, e até mais perigoso pelo potencial financeiro.

“O dinheiro que circula do crime organizado é muito grande e está capturando mercados formais, esse é o grande risco”, disse Lima. “Se o governo é um dos principais compradores do país, e se eu não tenho regulação, não tenho cadastro, não coordeno as informações, eu estou quase criando um paraíso para as facções.”

O promotor Silvio Loubeh, do núcleo do Gaeco em Santos, diz que integra a ala pessimista quando o assunto é a infiltração do crime na sociedade. Ele lembra da pesquisa Datafolha divulgada há um ano que apontou que 14% da população brasileira convive com facções e milícias no próprio bairro, como um sinal gravíssimo.

“É difícil fazer um gráfico matemático [de quando começa o narcoestado]”, disse Loubeh. “A questão é se o quadro atual é reversível ou não.”