SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Brasil está aos cacos. Um mapa do país esculpido em concreto armado foi cravejado com estilhaços de vidro, formando um escudo precário contra uma ameaça desconhecida. Concebido em 1979, durante a ditadura militar, o trabalho de Ivens Machado é a metáfora de uma sociedade tão isolada quanto impenetrável; o retrato de um país que se arma contra a sua própria população.

Carlos Zilio, por sua vez, revela em um autorretrato as lacerações provocadas por essa violência. Em 1970, o pintor levou três tiros e foi preso por participar da guerrilha urbana contra o regime militar. Numa alusão a esse episódio, ele representou a si mesmo como uma mancha de sangue sobre uma tela branca, mostrando que feridas por vezes se confundem com a nossa identidade. Se por um lado o brasileiro é um povo vibrante, por outro é também um corpo partido.

Essas diferentes visões de país emergem agora da exposição “Gilberto Chateaubriand: Uma Coleção Sensorial”, em cartaz no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o MAM. A mostra celebra o centenário de nascimento do diplomata que se tornou um dos maiores colecionadores do Brasil.

Filho do magnata da comunicação Assis Chateaubriand, Gilberto deixou um acervo com mais de 8.000 obras quando morreu, em 2022. Há 32 anos, cerca de 6.400 itens da coleção foram cedidos ao MAM em regime de comodato. Desse total, em torno de 350 peças estão expostas agora no museu carioca.

“É uma coleção que cobre mais de um século de arte brasileira, começando com as obras mais antigas, da década de 1910, até chegar a trabalhos mais atuais”, diz Raquel Barreto, curadora-chefe do MAM. “Essa exposição nos ajuda a pensar não só a produção dos grandes artistas, mas também a própria história do Brasil.”

Isso é evidente na sala expositiva intitulada “Origens”, um dos cinco núcleos que compõem a exposição. Nesse espaço, estão reunidos trabalhos que foram expostos no MAM em 1981, quando a instituição realizou a primeira grande mostra dedicada ao acervo de Chateaubriand.

A releitura desse projeto leva ao público as cores saturadas da tela “O Vendedor de Frutas”, de Tarsila do Amaral, e as célebres bandeirinhas do pintor Alfredo Volpi. Há também o cenário idílico do quadro “Paisagem de Itapuã”, de José Pancetti, primeira obra adquirida pelo colecionador, em 1953.

São obras que jogam luz sobre aquilo que o Brasil tem de mais popular. “É uma visão de país dos modernistas, com aqueles cenários coloridos e idealizados”, diz Barreto. “Mas, de repente, a gente tem a dureza dessa obra.”

Numa espécie de santuário improvisado, repousa a fotografia de um homem morto. O cadáver está estendido sobre o chão com os braços abertos, evocando a imagem do Cristo crucificado. No entanto, diferente do filho de Deus, ele não tem cinco chagas no corpo, mas sim 62 marcas de tiro.

Trata-se da imagem de Manoel Moreira, conhecido como Cara de Cavalo, criminoso executado pela polícia do Rio de Janeiro, em 1964.

Hélio Oiticica transformou a fotografia do homem baleado em uma de suas obras mais emblemáticas. Intitulada “Homenagem a Cara de Cavalo”, o trabalho eleva à condição de mártir uma figura fadada a morrer como vilão.

“Essa é uma obra muito importante pelo contexto em que foi produzida”, diz Barreto. “Oiticica faz nela uma denúncia política que traz também uma dimensão experimental, algo que é uma marca de seus trabalhos.”

Ainda que de maneira subjacente, o caráter político também está presente em um trabalho de Waltercio Caldas. Em 1976, durante a ditadura, o artista projetou um quebra-cabeça todo branco, naquilo que parece ser uma referência à fragmentação social e política do país.

A assepsia do quebra-cabeça é maculada por um pequeno círculo vermelho semelhante a uma gota de sangue. É como se essa mancha mostrasse de maneira implícita que as peças foram unidas por meio da coerção e da violência.

Os tons rubros aparecem novamente em uma obra de Wanda Pimentel. No entanto, tudo o que era brutalidade na tela de Waltercio Caldas vira liberdade no quadro de Pimentel. No trabalho, um pé feminino se insinua sobre o assento de um carro, enquanto dois cigarros estão jogados preguiçosamente em cima do porta-luvas do veículo.

É um cenário de forte atmosfera sexual e hedonista, elementos presentes também em imagens do fotógrafo Alair Gomes. As fotografias mostram homens na praia de Ipanema com corpos tão esculpidos que lembram o estatuário renascentista.

Obras como essas sintetizam a diversidade da produção artística nacional. Ora vemos um Brasil encurralado pela dor, ora vemos um país inebriado pelo gozo.

“Dificilmente o público conseguiria ver tantas obras diversas e com enorme qualidade num mesmo lugar”, diz Yole Mendonça, diretora-executiva do MAM. “O objetivo da mostra é justamente pôr o brasileiro em contato com essa riqueza artística.”

Quem anda pela exposição tem também a oportunidade de conhecer as primeiras obras de nomes hoje consagrados. Exemplo disso é Adriana Varejão, uma das artistas plásticas mais importantes do Brasil.

A pintora está presente na exposição por meio da tela “Altar”, de 1987 — produzida um ano antes de sua primeira exposição individual, na antiga galeria Thomas Cohn. O trabalho incorpora elementos do barroco, representando santos e anjos por meio de pinceladas cheias de carnalidade. A tinta é tão espessa que parece prestes a jorrar sobre o observador.

“Chateaubriand estabeleceu uma relação de proximidade com os artistas que realmente era importante para eles”, diz Mendonça. “Muitos disseram que, durante algum tempo, só conseguiam vender para ele.”

Além de mecenas, o colecionador era uma espécie de desbravador. Ele não se contentava em adquirir apenas obras de artistas do Sudeste, buscando ampliar seu campo de atuação para outras regiões do país.

Por isso, investiu em trabalhos de nomes como Marepe e Chico da Silva num momento em que esses artistas ainda não estavam no radar das grandes instituições.

Diretor artístico do MAM, Pablo Lafuente diz ser importante descentralizar o olhar sobre a produção artística nacional. “Isso demanda um exercício constante de troca com essas comunidades”, diz ele, para quem a exposição é uma evidência da nossa pujança cultural.

“A mostra traz diferentes Brasis e uma diversidade de expressões e de linguagens que é gigante. Essa coleção mostra que falar sobre o país é falar também sobre a sua pluralidade.”

Gilberto Chateaubriand: Uma Coleção Sensorial

Quando: De qua. a dom., das 10h às 18h. Até 31 de janeiro de 2026

Onde: Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro – Av. Infante Dom Henrique, 85, Aterro do Flamengo

Preço: Gratuito

Classificação: Livre