BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Uma mulher olha para a janela e lamenta. “É muito estranho ver a cidade no escuro”, diz, com um certo sotaque sulista, a personagem do filme gaúcho “Futuro Futuro”, filmado em Porto Alegre. Naquela história futurista, uma enchente atinge a cidade fictícia.
No dia seguinte, fora de cena, o centro da capital gaúcha estava tomado pelo breu e todo inundado. Era maio do ano passado, data da tragédia que inundou o Rio Grande do Sul e atingiu milhões de pessoas.
O longa-metragem de Davi Pretto fechou a mostra competitiva do 58º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, nesta sexta (19), e preencheu a sala do Cine Brasília com a cor vermelha, o som de sintetizadores e um clima de melancolia.
Desde a concepção do roteiro, nos idos de 2020, estava decidido que haveria uma enchente naquela história. As gravações começaram entre abril e maio de 2024 e era uma chuvarada que não parava. Naquela altura, as águas do rio Guaíba já ameaçavam tomar conta da cidade.
O décimo dia de gravação teve de ser interrompido, já que a enchente tinha inviabilizado os sets de filmagem. Algumas locações não chegaram nunca mais a ser revisitadas pela equipe, pois o estrago causado foi de cauda longa.
“Futuro Futuro” traz um protagonista que não sabe o seu nome. O homem desmemoriado acorda na área pobre de uma cidade brasileira acometido de uma nova síndrome neurológica. Nesta periferia, todos sonham em estar na parte rica da cidade, inacessível para quem não é de lá.
Este é um futuro próximo, marcado pelo avanço da inteligência artificial, pela precarização do trabalho e pela radicalização das desigualdades sociais.
“É um filme que não tenta fazer profecia, não tenta adivinhar futuro nenhum, ele tenta especular”, diz o diretor, que buscou abordar temas como tecnologia, cidades, relações de trabalho e imagens.
De certa forma, porém, o filme gaúcho acaba especulando um futuro próximo de uma maneira mais drástica e num plano menos conceitual do que os realizadores imaginavam.
“Foi uma coincidência muito trágica”, diz a produtora Paola Wink. Apesar de ser traumático e da decisão de não colocar imagens da enchente real no filme, “não tinha como tirar a enchente da história”
Antes da exibição do filme, o diretor Davi Pretto descreveu sua obra. “É um filme estranho, meio que o oposto de uma ficção científica”, disse.
“A gente gosta de pensar que esse filme pensa o futuro como uma sombra que se projeta no presente”, diz Pretto. “Fala muito sobre o destino das nossas cidades, da tecnologia, o destino das nossas imagens. Então eu queria dedicar a todo mundo que luta para que o VoD [vídeo sob demanda] seja, em algum dia, e a gente espera que seja amanhã, regularizado nesse país.
Nesta última noite da mostra competitiva do evento, a escolha dos filmes foi menos óbvia.
Nas noites anteriores havia uma temática comum que unia o conjunto de filmes de cada sessão –LGBTQIA+, mulheres, conflitos de terra, a periferia, o Nordeste– cada um desses temas representando diferentes fronts das chamadas guerras culturais que inundaram o Brasil na última década.
O tema que uniu os três filmes de sexta, porém, foi mais etéreo. De uma forma ou de outra, eles falam de destruição –de um patrimônio histórico, de uma casa de família, da memória, de sonhos, do mundo.
Dois curtas abriram a última noite da mostra competitiva. “Replika”, de Piratá Waurá e Heloisa Passos, narra o dilema enfrentado por um povo do Xingu diante de um local sagrado que está fora da reserva indígena. Com uma história sobre memória, tradição e espiritualidade, o filme coloca o espectador de frente para temas urgentes, como a demarcação de terras indígenas, por meio de outra perspectiva.
Já o curta brasiliense “Fogo Abismo”, de Roni Sousa, traz um relato em primeira pessoa sobre a relação com a cidade onde cresceu, na periferia de Brasília, a mãe, o pai e os medos de cada um deles. A partir de fotos de família, o diretor revisita sua infância e apresenta sua casa.
Na noite anterior, nesta quinta (18), também se fugiu da categorização calcada nas tais pautas de costumes e se voltou para o gênero. O conjunto das obras exibidas se volta para filmes de crime. O curta “Ajude os Menor” é um faroeste alagoano em preto e branco, que narra o conflito entre pedreiros e um engenheiro numa construção.
Já o longa “Assalto à Brasileira”, de José Eduardo Belmonte, retrata de forma cômica o assalto a uma agência do banco Banestado em Londrina, no Paraná, em 1987. É o filme com mais apelo comercial da mostra, com nomes como Murilo Benício, Christian Malheiros, Robson Nunes e Paulo Miklos no elenco.