SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O curtailment, termo em inglês para corte de geração de energia, deve ser estendido às pequenas centrais hidrelétricas, mais conhecidas pela sigla PCHs, bem como a projetos térmicos e de biomassa menores. A viabilidade foi discutida nesta sexta-feira (19) em reunião convocada pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica).
Estavam presentes representantes de empresas do setor, a Abradee, entidade que representa as distribuidoras e o ONS (Operador Nacional do Sistema).
Esses geradores menores não podem sofrer cortes diretos do ONS, mas o órgão fez uma apresentação mostrando a viabilidade legal para esse tipo de medida, que recairia sobre as distribuidoras. Não há registro de corte organizado de PCHs ou demais projetos na história do setor, e a medida tende a sofrer forte resistência.
Instalação de painel solar em Boa Vista (RR); setor elétrico busca solução para micro e minigeração distribuída Lalo de Almeida -17.ago.22 Folhapress **** Também ficou acertado que serão estudadas alternativas para cortar a chamada geração distribuída remota de grande porte, que ocorre em fazendas com painéis fotovoltaicos, que tenham entre 3 e 5 MW (megawatts).
O curtailment virou o principal assunto no setor de energia. Na semana que passou, mobilizou entidades públicas e privadas. A Comissão de Infraestrutura do Senado marcou para terça-feira (23) uma audiência pública para entender os cortes. Mais de 80 representantes do setor acompanharam a reunião que tratou do tema no TCU (Tribunal de Contas da União). O órgão regulador abriu auditoria para avaliar os cortes de geração em maio, mas intensificou o debate.
Na linha de frente de todo o movimento está a discussão sobre a segurança do sistema. No mundo da energia é fundamental alinhar oferta e consumo. Sem isso, a luz cai. No racionamento, lá na virada dos anos 2000, o Brasil teve um mega-apagão porque a oferta ficou abaixo do consumo. Agora, o problema é inverso: o excesso de oferta pode sobrecarregar o sistema e levar a apagões.
Há dois grupos de alternativas para resolver o problema. De um lado, criar mecanismos para elevar o consumo, de outro, buscar alternativas para controlar a oferta.
A questão mais sensível é que esse excesso está concentrado particularmente no segmento de MMGD (Micro e Minigeração Distribuída). Trata-se da geração feita por painel solar em teto de casas ou fazendas solares que atendem residências, pequenos estabelecimentos comerciais e industriais –um tipo de fonte sobre o qual o ONS não tem o menor controle.
“Diante do atual quadro, o ideal é criar um novo modelo para o sistema elétrico brasileiro, alinhado com a geração renovável, para que o país possa seguir adiante como energia limpa, a baixo custo, mas ainda estamos presos nas medidas emergenciais de curto prazo”, diz Luiz Eduardo Barata, presidente da Frente Nacional dos Consumidores de Energia e ex-diretor-geral do ONS.
Sem revisão do modelo, emergencialmente, desde 2023, o ONS tem usado o curtailment para calibrar a oferta das fontes de energia que ele controla. Corta hidrelétricas, térmicas flexíveis e parques de energia eólica e solar. A ideia de estender o corte às PCHs é o indicativo de que a situação se agravou.
O problema é que a GD não para de crescer e de ocupar cada vez mais espaço das demais fontes. Nos últimos quatro anos, a participação da GD foi multiplicada por oito. A capacidade instalada está em 43,5 GW (gigawatts). Já é a segunda fonte de geração, atrás apenas das hidrelétricas. A previsão do próprio ONS é que a GD cresça quase 50% até 2029, indo a 65 GW.
Diante disso, ONS enxuga gelo todo dia. Nasce o sol, a GD inunda sistema. O ONS corta as outras fontes. O sol cai, a GD some. O ONS precisa acionar novamente outras fontes, privilegiando térmicas. Não importa se é bandeira tarifária verde ou vermelha. A rotina é essa, sempre com mais GD entrando no sistema, e o ONS ampliando os cortes.
Nos finais de semana e feriados, quando consumo cai, os cortes precisam ser ainda maiores –e no domingo do último Dia dos Pais, veio o susto. Por volta das 13h, a demanda caiu muito, e o ONS restringiu quase 100% da produção eólica e solar. Manteve apenas as térmicas inflexíveis (que não podem ser desligadas) e um mínimo de geração hidrelétrica para preservar a frequência do sistema.
O atual cenário é um paradoxo. Expansão de energia renovável não deveria ser um problema. É tudo que se quer neste momento. O planeta investe justamente numa transição que privilegia a energia limpa, para reduzir emissões de gases de efeito estufa e deter as mudanças climáticas.
O pano de fundo do problema, porém, não é o dilema ambiental, mas um grande jogo de interesses econômicos
A GD é impulsionada por um tipo de subsídio que dá desconto no uso do fio. Quem coloca o painel fica isento. Como não há almoço grátis, a distribuidora que atendia aquele cliente pode ratear o valor do desconto com os demais consumidores de sua área de concessão -ou seja, quem não tem condições de ter o seu próprio painel, ajuda a pagar pelo painel de quem pode ter.
Especialistas explicam que no entorno desse painel floresceu uma verdadeira industria, que transforma o subsídio em lucro. Segundo dados da EPE (Empresa de Pesquisa Energética), um projeto de GD tem taxa de retorno de 50% ao ano, e é esse ganho que impulsionou o crescimento exponencial desse tipo de energia.
Há uma lei que reduz gradativamente o subsídio em 15% ao ano até 2029, mas diante do atual desequilíbrio do sistema, algumas entidades já defendem a revisão da lei para que seja possível suspender os subsídios a novos projetos.
“O subsídio é fundamental para manter as taxas de retorno elevadas”, explica a diretora Técnica da empresa de energia PSR, Angela Gomes. “Se tirar o subsídio, as taxas de retorno vão continuar sendo atraentes, e os investimentos serão mantidos, mas sem esse crescimento desordenado que traz risco de colapso ao sistema.”
Subsídio é tema espinhoso. Quando o debate para suprimi-lo esquentou em 2019, os defensores da energia solar tiveram a habilidade de criar uma campanha vencedora, divulgando que havia um plano para “taxar o sol” –que nada mais era do que cobrar o fio.
O entra-e-sai da GD também afeta o preço da energia no mercado à vista diariamente. Na quinta-feira (18), por exemplo, chegou ao piso de R$ 58,60 pelo MWh na hora do almoço em todas as regiões. No fim da tarde, já estava na casa de R$ 330. O Empresas pagam por isso, mas o gerador de GD nem sabe. “A variação de preço em si é um sinal importante, que o mercado sabe ler, mas o problema é que ela não chega ao consumidor de GD, que, então, não tem a mínima ideia do que está provocando”, explica fundador da Volt Robotics, empresa especializada em energia, Donato da Silva Filho.
Por isso, outra corrente quer mudar a lei para que a GD passe a ter preço. Diferentemente de outras modalidades de abastecimento, as trocas de energia entre o painel solar da GD e o sistema de abastecimento não prevê transação financeira. É medido em elétron. Ou seja, quem joga na rede de dia e pega do sistema à noite segue uma contabilização por kWh (kilowatt-hora), sem considerar o preço nos diferentes horários.
“Pelo modelo atual os consumidores de GD usam a rede elétrica como se fosse uma bateria gratuita, mas não pagam pelos custos reais de manutenção, operação e tributos ou encargos do sistema elétrico. Quem paga a conta são os outros consumidores (em geral os mais pobres), porque esses custos são repassados nas tarifas”, diz Elbia Gannoum, presidente da ABEEólica (Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias).
A ABGD (Associação Brasileira de Geração Distribuída) defende a aplicação da variação do preço, mas acompanhada pela introdução da bateria -o outro grande tema dessa discussão no mercado. O sistema é caro e não existe incentivo econômico para a sua adoção.
Com a aplicação dessa tecnologia, associada a uma variação de preço, quem produz GD seria instigado a ter bateria. Poderia guardar ao longo do dia, quando o preço da energia é mais baixo, e venderia à noite, quando ela custa mais.
Segundo Carlos Evangelista, presidente da ABGD, a proposta já foi entregue pela entidade à Aneel e ao MME (Ministério de Minas e Energia).
O curtailment também aprofunda os prejuízos das empresas instaladas em parques eólicos e solares. Diferentemente das tradicionais hidrelétricas, esses empreendimentos não têm direito a ressarcimento quando são suspensos pelo ONS. A tentativa de conseguir reembolso foi parar até na Justiça, mas segue sem solução. A conta já teria passado de R$ 1 bilhão.
O ambiente é de apreensão geral. Investidores estão se retraindo do mercado. Instituições financeiras temem não receber pelo crédito já concedido. Algumas empresas já pediram recuperação judicial e a expectativa é que outras vão quebrar.
Em relatório recente, intitulado Brazilian Utilities Deep Dive: Power by the Clock, o banco UBS fez detalhada análise sobre a variação do preço e volume de cortes três anos à frente. O documento ressalta que em um cenário de ausência de crescimento da demanda, o curtailment pode chegar a 24% da oferta em 2028.