SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Brasil publicou nesta sexta-feira (19) seus argumentos no caso da Corte Internacional de Justiça (CIJ), órgão da ONU responsável por aplicar o direito internacional a Estados, no qual a África do Sul acusa Israel de cometer genocídio na Faixa de Gaza.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decidiu aderir à ação sul-africana em julho. Na ocasião, o Itamaraty disse que, dessa forma, o país cumpria suas obrigações firmadas na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, da qual o Brasil é signatário há mais de 70 anos. Dez países também já aderiram ao caso: Colômbia, Líbia, México, Espanha, Turquia, Chile, Maldivas, Bolívia, Irlanda, Cuba e Belize. Um pedido de intervenção da Autoridade Palestina ainda está sob análise.

No documento de 33 páginas tornado público nesta sexta o governo brasileiro evita acusar Israel diretamente de ter cometido o crime de genocídio, diferentemente do que fez a África do Sul. Em vez disso argumenta que a CIJ precisa reavaliar a jurisprudência sobre esse crime.

Criada em 1945, a Corte não imputou genocídio a nenhum país em toda a sua história, o que gera críticas de alguns especialistas sobre a forma como o direito internacional vem sendo aplicado e a dificuldade de provar a intenção de um Exército ou governo de cometer genocídio, um dos requisitos para a tipificação.

Em 2007, por exemplo, a CIJ reconheceu que houve genocídio no massacre de Srebrenica, que ocorreu em 1995 durante a Guerra da Bósnia, mas não declarou a Sérvia culpada —apenas afirmou que Belgrado não havia agido de forma satisfatória para impedir o crime. Já em 2015, a corte não identificou que tenha havido genocídio cometido pela Croácia ou pela Sérvia no conflito de dissolução da Iugoslávia.

Nesse sentido, o Brasil afirma no documento que “a Corte deve dizer de maneira categórica se há intenção genocida ou não. Isto é, deve demonstrar, com base em todas as provas, que a única conclusão razoável é que há intenção genocida, ou, ao contrário, que a única conclusão razoável é que não há intenção genocida nos ataques sistemáticos contra a população palestina na Faixa de Gaza”.

O texto prossegue dizendo que, uma vez que a intenção genocida é tão difícil de provar, e dada a gravidade do crime de genocídio, o Brasil “respeitosamente pede” que a CIJ emita uma decisão precisa e inequívoca.

“A provável razão pela qual faz isso tem a ver com o caso da Croácia vs. Sérvia”, diz à Folha de S.Paulo o professor de direito internacional da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) Lucas Carlos Lima. “Nele, a Corte verificou todos os elementos do crime, mas não achou a intenção genocida. Por esse motivo, [o Brasil] parece ter insistido tanto nesse quesito, que possui uma alta exigência para ser provado”, afirma.

Para Lima, “a estratégia do Brasil é interessante porque, como repetiu diversas vezes [no argumento], não está se manifestando sobre se as ações concretas de Israel são genocídio. Ao mesmo tempo, indica uma série de ações em amplas frentes que a Corte deveria considerar para chegar à sua conclusão da violação ou não”.

Entre as ações citadas pelo governo brasileiro no texto estão: a morte em larga escala de mulheres e crianças; a expulsão reiterada de palestinos de suas casas; a fome constatada pela ONU em Gaza; a destruição quase completa da infraestrutura do território; e falas públicas de autoridades do governo israelense, que compararam palestinos a “animais humanos” e os descreveram como filhos de Amaleque —personagem bíblico inimigo do povo israelita cuja “semente” Deus ordena que seja destruída.

Dadas essas circunstâncias, afirma o Itamaraty, “o Brasil é da opinião que a Corte tem perante si elementos para determinar que a única conclusão razoável é a de que existe a intenção genocida”.

“Por mais condenáveis que sejam os ataques terroristas cometidos pelo Hamas em outubro de 2023”, diz o texto, afirmar que todos os palestinos de Gaza são terroristas ou membros do Hamas seria punição coletiva e “inconsistente com o direito internacional”.

O documento também argumenta que, para reconhecer a existência de genocídio, a Corte não deve exigir a prova de que a destruição de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso seja a única intenção de um ator estatal. Bastaria que houvesse evidências “além de qualquer dúvida razoável” de que essa intenção esteja presente, mesmo que coexistindo com outros objetivos.

Esse ponto serve como contestação de uma defesa recorrente do governo israelense e de seus apoiadores: a de que os ataques em Gaza visam destruir o Hamas e resgatar reféns e que as mortes de civis seriam apenas efeitos colaterais dessas operações.

Em uma das referências utilizadas pelo Itamaraty, o documento cita o voto vencido do juiz da CIJ Antônio Augusto Cançado Trindade, morto em 2022, no caso em que a Corte não imputou à Sérvia o crime de genocídio pelo massacre de Srebrenica.

“Em seu voto, o juíz Cançado Trindade disse que ‘os culpados de genocídio quase sempre dizem que estavam em um conflito armado e que suas ações foram tomadas nesse contexto; entretanto, genocídio pode ser um meio de atingir objetivos militares da mesma forma que um conflito militar pode ser um meio para instigar um plano genocida.'”

Por fim, o governo brasileiro diz que, ao intervir no caso contra Israel, busca “garantir a interpretação uniforme da Convenção”, o que seria indispensável para garantir a efetividade e assegurar a aplicação da ordem internacional legal contra o genocídio.

Outros países têm até janeiro do ano que vem para protocolar intervenções no caso. Depois disso, Israel deve apresentar sua defesa formal.