PEQUIM, CHINA (FOLHAPRESS) – Chegou às livrarias brasileiras a antologia de contos “Grito”, de Lu Xun, um dos fundadores e considerado o maior nome do modernismo literário na China. Saindo pela editora 34, são 576 páginas do Graciliano Ramos chinês, no dizer de seu tradutor, Giorgio Sinedino, professor na Universidade de Macau.
O livro é publicado num momento de intensificação do intercâmbio literário entre os dois países, que vai além da edição tradicional. Segundo relatório da Academia Chinesa de Ciências Sociais, a tradução por inteligência artificial levou a uma disparada do acesso à literatura da China no ano passado, com o Brasil entre os dez mercados em que o fenômeno mais se evidenciou.
Segundo Chen Dingjia, pesquisador da academia, a aplicação da tecnologia trouxe “mudanças revolucionárias na tradução, edição e promoção da literatura digital, sustentando uma estratégia de lançamento internacional com um só clique para os livros chineses”.
Não foram apresentados dados precisos sobre o Brasil, mas o estudo afirma que se atingiu um marco no mercado do país, saindo de zero para centenas de obras chinesas traduzidas por IA em 2024. Entre os dez maiores, apontou ainda Alemanha, França, Grécia e Espanha.
“A tecnologia de tradução por IA está facilitando a expansão para criadores de conteúdo que estão se aventurando no exterior”, descreve o relatório, saudando como um avanço para o “soft power” da China. O consumo de literatura digital chinesa no exterior teria saltado de 230 milhões em 2023 para 352 milhões em 2024, com destaque para ficção científica.
Para o editor Lu Haiming, professor da Universidade de Nanjing e ex-presidente da Casa Editorial de Nanjing, a tradução por IA, como a própria tecnologia, “ainda está no começo, ainda se está aprendendo a melhor maneira de usá-la, por enquanto não tem sido tão boa”. Mas ele já vê benefício nesse maior intercâmbio com o Brasil.
Para a agente literária Clarissa Bongiovanni, as editoras brasileiras demonstram crescente interesse em obras chinesas, “mas o fato de haver poucos tradutores literários faz com que muitas desistam”, problema que não será resolvido com a tradução por IA. “Ela funciona mais para a produção comercial, como as histórias em quadrinhos chinesas, que já têm um público que quer ler.”
Diz que uma prova da resistência à tradução por IA é que, em contratos de cessão de direitos autorais, já aparecem cláusulas determinando que seja feita por humano. No caso do livro que encontrou na feira de Xangai e saiu em março no Brasil, “Os Segredos do Zoológico”, do taiwanês Huang Yi-Wen, ficou a cargo de Verena Veludo, professora do Instituto Confúcio e tradutora de poesia e literatura infantil.
Giorgio Sinedino, tradutor também de clássicos como “Os Analectos”, de Confúcio, que saiu em 2012 no Brasil e em novembro passado na China, vê impactos positivos e negativos da inteligência artificial em sua área.
“É uma nova ferramenta extremamente útil, que pode otimizar o trabalho em termos de tempo, buscar erros, servir como referência”, diz. “O lado negativo é que isso tenha efeito sobre a nossa disposição de dominar línguas estrangeiras. Quando domina, tem condições de julgar os limites da máquina.”
Ex-diplomata brasileiro no país, era um dos raros que falavam chinês. Elogia a comunidade de tradutores brasileiros bilíngues, mas lamenta não haver ainda “massa crítica para explicar uma ou outra civilização”. Sem um maior número de profissionais “capazes de manipular essa tecnologia e seus limites”, prevê traduções corretas em termos técnicos, mas sem despertar maior interesse em leitores brasileiros ou chineses.
No caso de “Grito”, a exemplo de outras traduções suas, como “Daodejing” e “O Imortal do Sul da China”, clássicos do daoísmo, a edição vem com elementos de apoio à leitura -um estudo biográfico de Lu Xun e um ensaio sobre os 14 contos, além de uma linha do tempo, desenhos do artista plástico e pioneiro do mangá chinês Feng Zikai e um encarte com 40 fotos.
“Sobre a tradução em si, é uma tentativa de utilizar uma nova técnica que chamei de tradução dramatizada”, diz Sinedino. “Os textos são adaptados estilisticamente para a nossa literatura. Nesse processo, inspirei-me numa série de autores do modernismo da geração de 1930, devido às semelhanças que existem com a literatura de Lu Xun, também regionalista.”
Cita não só Graciliano Ramos, mas José Lins do Rêgo e a primeira fase de Jorge Amado. “Tem um lado do questionamento social, mas Lu Xun vai um pouco além de Graciliano e tem um humor, um sarcasmo, que podemos aproximar dos beberrões do Jorge Amado”, descreve.
No ano que vem, Sinedino retorna aos clássicos e deve lançar uma nova tradução de “A Arte da Guerra”, de Sun Tzu.