SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Radicada em Londres há mais de dez anos, a cantora lírica Gabriela Di Laccio quase desaprendeu a ler em inglês ao receber, há poucos meses, um envelope da Coroa Britânica. “Uma carta do Palácio, como assim?”, diz ela. “Eu não conseguia ler, as letras ficaram embaralhadas.” A carta concedia à artista o título de Membro da Ordem do Império Britânico.

A honraria é fruto do trabalho de Di Laccio na Donne, organização fundada por ela com objetivo destacar compositoras na música clássica. A partir da cerimônia de instituição oficial, no fim deste mês, a artista entrará em um rol com nomes como Paul McCartney, Ringo Starr, Adele e Ed Sheeran.

Di Laccio também se junta a brasileiras condecoradas em outros anos pela realeza britânica —a dançarina Pietra De Mello-Pittman e a escritora Sandra Laucas. Antes de oficializar o título, a cantora vem a São Paulo, onde participa do Abram Alas e do Fórum de Mulheres Ópera Latinoamérica, série de espetáculos e painéis realizados no Theatro Municipal entre esta sexta (19) e domingo (21).

Nascida em Canoas, no Rio Grande do Sul, Di Laccio estudou canto lírico na Camerata Antiqua de Curitiba e dali foi selecionada para estudar no Royal College of Music, em Londres, em meados dos anos 2000. Em 2016, com anos de dedicação à arte, ela notou algo errado na sua formação. “Eu tinha estudado em um dos melhores conservatórios do mundo, e durante meu tempo por lá eu não ouvi falar de mulheres compositoras”, afirma.

O incômodo surgiu ao encontrar, numa ida a um sebo, uma enciclopédia que listava cerca de 6.000 mulheres da história da música clássica. Nos anos seguintes, Di Laccio se dedicou a elencar artistas do mundo todo que compunham peças de canto e outras modalidades da música clássica —e notou que, em comparação a homens, a invisibilização de compositoras era até mais sensível do que se via com intérpretes e instrumentistas.

“Eu contei o repertório das 15 melhores orquestras do mundo da temporada inteira de 2018 e 2019 e observei que apenas 2,3% das músicas executadas eram compostas por mulheres”, afirma. O processo de investigação levou a artista a lançar ainda em 2018, no Dia Internacional da Mulher, a primeira versão do projeto Donne —então uma plataforma que elencava compositoras do mundo todo.

Nos anos seguintes, o projeto foi ganhando destaque com o reconhecimento das pares de Di Laccio. “Mulheres do mundo inteiro entraram em contato, inclusive compositoras, que agradeciam e pediam para terem o nome adicionado à plataforma”, diz ela, que passou a colaborar com um serviço de streaming e com o Royal Albert Hall, levando mais compositoras tanto a playlists quanto à importante casa de espetáculos.

A Donne também passou a monitorar a programação de grandes orquestras pelo mundo, verificando a quantas anda a presença de compositoras em seus concertos. “Não tem desculpa hoje em dia para fazer um concerto ou um festival em que não haja 50% de mulheres”, diz.

O projeto ainda rendeu um feito que foi parar no livro dos recordes —no ano passado, Di Laccio e cerca de cem artistas se apresentaram seguidamente ao longo de 24 horas.

“Foram essas as duas coisas que me deram a honraria da família real: serviços prestados à música e à igualdade de gênero”, afirma.

Soprano especialista em música barroca e moderna, a artista hoje também dá maior atenção a compositoras e obras feitas no Brasil e na região. “Na Europa, as pessoas não conhecem a riqueza da música da América do Sul, então faço bastante recitais nesse sentido.”

Para a artista, a inclusão de mulheres compositoras em grandes salas hoje não é somente uma reparação —é fundamental para a longevidade da música clássica. “Não é só igualdade de gênero: falta diversidade também, porque há muitos níveis de invisibilidade”, afirma ela. “Estamos falando do futuro da música de concerto, da música clássica, de inovar um pouco a linguagem porque a gente precisa também de novos públicos.”

ABRAM ALAS: AMPLIANDO VOZES, TRANSFORMANDO A INDÚSTRIA

– Quando 19, 20 e 21 de setembro

– Onde Theatro Municipal: pça. Ramos de Azevedo, s/n, São Paulo

– Preço Gratuito