SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Aneira Thomas nasceu um minuto após a meia-noite do dia 5 de julho de 1948, em Glanamman, no oeste do País de Gales. Sétima filha, foi a primeira cujo parto aconteceu em um hospital -e, por isso, se tornou a primeira pessoa nascida no NHS, o sistema nacional de saúde britânico, que, como ela, estreava naquela madrugada de verão.
“Eu demorei para entender o significado disso, de ser o ‘bebê do NHS’, mas hoje me orgulho muito de carregar esse título”, conta à reportagem a hoje enfermeira aposentada.
O NHS, atualmente septuagenário como Aneira -batizada em homenagem a Aneurin Bevan, o político galês considerado o “pai” do sistema de saúde-, não foi o primeiro sistema público de saúde. A Nova Zelândia já havia introduzido cuidados médicos gratuitos em 1938, assim como os bolcheviques na União Soviética.
Ele se tornou, no entanto, o mais conhecido dos casos, fundado no princípio de universalidade ao acesso em saúde e na capilarização do atendimento médico. Em casos anteriores, como o soviético, por exemplo, o acesso a provedores de saúde era virtualmente inexistente fora das grandes cidades.
Quarenta anos depois, na Constituição de 1988, foi para o NHS que os formuladores de política pública brasileira se voltaram para estabelecer os parâmetros do SUS, que entraria em ação em 1990 e completa 35 anos nesta sexta-feira (19).
Recentemente, foi o “irmão mais novo” que serviu de inspiração para o sistema britânico. Publicado em julho deste ano pelo governo do trabalhista Keir Starmer, o plano de ação para os próximos 10 anos do NHS detalha uma estratégia conhecida dos brasileiros: o uso de agentes comunitários de saúde. Chamado de Neighbourhood Health Service (serviço de saúde da vizinhança, em inglês), o programa é moldado à imagem do Estratégia Saúde da Família, modelo de atenção primária utilizado no Brasil desde 1994.
“Ficamos muito animados de ver que o programa chamou a atenção do secretário de Saúde e foi incluído na estratégia da próxima década”, diz o médico Matthew Harris, pesquisador da Imperial College, em Londres. Depois de uma temporada trabalhando no interior de Pernambuco no início dos anos 2000, durante os primeiros anos do ESF, Harris retornou à sua Inglaterra natal e passou a advogar pela implementação de um sistema similar no NHS.
“No nosso sistema, até recentemente, ficamos esperando que as pessoas cheguem à clínica, ao hospital, não havia uma estratégia pró-ativa de busca”, explica o médico. “Não havia oportunidade de simplesmente descobrir os problemas que as pessoas têm no seu dia a dia, isso era realmente único do sistema brasileiro.”
Em 2021, ele conseguiu implementar um programa-piloto de agentes comunitários em Westminster, no centro de Londres. Quatro anos depois, o programa se expandiu para 27 localidades, como a Cornuália, região costeira no oeste inglês que conta com 60 agentes comunitários de saúde -com financiamento garantido pelos próximos cinco anos, conta Harris. “Ainda falta muito para alcançarmos a cobertura que o Brasil tem desse serviço, mas vamos avançando”, diz.
Apesar das diferenças de território, população -o Brasil é cerca de 35 vezes maior do que o Reino Unido em território, com três vezes mais população- idade e tamanho da economia, muitos dos problemas enfrentados por ambos os sistemas são parecidos. No Reino Unido, a discussão sobre subfinanciamento e lotação do sistema ocupam diariamente as páginas dos jornais.
No final de julho, pouco depois do anúncio do plano de 10 anos para o futuro do NHS, médicos residentes fizeram uma greve de cinco dias demandando melhores condições de pagamento. Aneira Thomas, a enfermeira galesa, diz que por muito anos costumava ir a manifestações por todo o país e se sentia enojada com o fato de médicos, enfermeiros e até cirurgiões precisarem ir às ruas após um plantão noturno para lutar por melhores salários.
“Eu pensava, como, como isso está acontecendo? Me fazia chorar ver pessoas fazendo isso quando elas salvaram vidas, estiveram em uma enfermaria por cerca de 10 a 12 horas e depois marchando por salário.”
No Brasil, a pesquisadora Margareth Portela, da Escola Nacional de Saúde Pública, ligada à Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) diz que uma parte substancial do financiamento público de saúde acaba indo para os estabelecimentos privados por meio, por exemplo, de isenção fiscal para hospitais filantrópicos ou parcerias público-privadas.
Entre a população britânica, só 14% dos adultos têm acesso à saúde privada, número que sobe para 25% da população no Brasil. “Quando a gente declara lá no Imposto de Renda, que pagou o plano de saúde, a consulta, a gente tem uma isenção que sai da conta do Estado brasileiro”, diz Portela.
Ela diz que há, claro, problemas de tempo de espera e de estruturas decadentes em hospitais com baixa manutenção, mas diz acreditar que há também uma falta de confiança na qualidade de cuidado.
“Ser privado não significa ser bom, mas nós vemos cada vez mais pessoas pagando plano de saúde”, afirma ela, que defende que seria benéfico para o sistema se as classes mais abastadas passassem a utilizá-lo mais, em vez de recorrer aos serviços particulares.
Harris, o médico inglês, acabou de voltar de uma viagem a Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio de Janeiro, onde levou agentes comunitários de saúde ingleses para conhecer seus colegas brasileiros.
“O que eu ouvi de agentes comunitários de saúde e de alguns dos líderes do sistema é que a ideia de que o NHS está aprendendo com o SUS lhes dá um enorme orgulho, mas acho que é uma pena que isso seja necessário para que os brasileiros vejam que o SUS é bom no que faz.”