SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Do alto de um balcão, Clara surge desbravando os versos de uma das canções mais emblemáticas do repertório operístico. “É verão e viver a vida está mansa. Os peixes saltam e o algodão está crescido”, canta a personagem, ao ninar uma criança.
“Numa manhã você vai se levantar e, cantando, vai abrir suas asas”, continua, num apogeu musical que traduz a esperança em meio à marginalidade na qual vivem os protagonistas de “Porgy and Bess”, considerada a grande ópera americana e que ganha montagem no Theatro Municipal de São Paulo a partir desta sexta-feira (19).
“Existe uma doçura e uma esperança muito fortes nessa canção e na imagem dessa mãe”, diz Grace Passô, premiada como atriz e diretora, no cinema e no teatro, e que foi convidada para comandar este capítulo da temporada lírica do principal palco da capital paulista.
Composta por George Gershwin nos anos 1930, “Summertime” é uma ária na ópera e um estandarte no jazz, a tradução perfeita do apelo popular que ele, junto ao libretista DuBose Heyward, esperava que “Porgy and Bess” tivesse, ao levar a cultura afro-americana para palcos líricos historicamente dominados por uma elite branca.
Ganhou versões em vozes absolutamente díspares e igualmente emblemáticas, como as de Billie Holiday, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald e Janis Joplin que embalava o ninar de Passô quando criança, e serviu de base até mesmo para a banda Sublime, em “Doin Time”, hoje mais lembrada na voz pop de Lana Del Rey.
“Eu não sei dizer o porquê de ela ter se tornado tão popular, mas é uma canção que fala de esperança, ao mesmo tempo em que tem em si uma melancolia. A contradição às vezes gera umas belezas”, afirma Passô, vencedora do prêmio Shell pelo texto da peça “Vaga Carne” e eleita melhor atriz no Festival de Brasília pelo filme “Temporada”.
Sob a batuta do maestro Roberto Minczuk e com participação do Coro Lírico Municipal e do Coral Paulistano, estes regidos por Maíra Ferreira, a primeira versão do Municipal para “Porgy and Bess” em 1992, uma turnê americana tomou seus palcos emprestados tem récitas até o dia 27 deste mês. Luiz-Ottavio Faria assume o protagonista masculino, enquanto Latonia Moore e Marly Montoni se alternam como a feminina.
A trama conta a história de Bess, uma mulher viciada em álcool e em “pó da alegria”, amante de um homem violento. Numa noite de bebedeira e jogatina, ele mata um rapaz da comunidade onde vivem, a fictícia Catfish Row, e foge. A mulher, abandonada, é rejeitada por todos ao redor, menos por Porgy, uma pessoa com deficiência, que vive de esmolas e é querido por todos ali.
Falamos da exclusão da exclusão, mas nunca num tom de resignação. Após ser acolhida, Bess larga seus vícios e cria-se um senso de comunidade mais significativo. Tudo desmorona, porém, quando o marido violento retorna. A protagonista fica à mercê de suas ameaças e, como se não bastasse, de seu traficante, que tenta seduzi-la despejando pó branco pelo palco.
Na versão de agora, a realidade do sul dos Estados Unidos da década de 1930 foi convertida para o Brasil de 2025. Não há lugar exato, o que transforma o palco numa amálgama de periferias, bombardeado por influências diversas, em especial na coreografia e nos figurinos.
Corpos se debatem em várias passagens, em sintonia com a corporalidade que já é marca de Passô em sua carreira enquanto atriz. As contorções são entrecortadas por menções ao break, ao funk, à capoeira, ao vogue e outros. Atrás, a cenografia de Marcelino Melo traz seu trabalho com miniaturas de favelas para uma escala colossal.
Conhecido como Quebradinha, o artista plástico reproduziu uma de suas obras em larga escala, concebendo um enorme tijolo que vira uma espécie de ninho, com seus buracos habitados pelos personagens da trama. No térreo, há uma vendinha. Nos andares intermediários, casinhas com janelas de alumínio. No topo, uma laje onde cadeiras de praia cercam uma churrasqueira.
Já os campos de algodão mencionados em “Summertime” viram um arco-íris de algodão doce no tabuleiro de um ambulante vestido de Homem-Aranha. Mototáxis, cadeiras plásticas de boteco e cachaça tragam a história ainda mais para dentro das periferias brasileiras.
“Nossa proposta é pensar Porgy and Bess no contexto social, econômico e político atual. Só assim é possível lidar com essa obra”, diz Passô, lembrando que a ópera teve a reputação abalada entre os anos 1960 e 1970, ao ser problematizada por movimentos de direitos civis. “Como todo grande clássico, o que me interessava, em termos cênicos, era a possibilidade de jogar luz no que é primordial, na força dela, e entender que deslocamentos poderíamos propôr.”
Passô destaca ainda a importância de ter os palcos do Municipal, e outros de grande valor ao redor do mundo, ocupados por equipes quase que inteiramente pretas seja como espectadora ou como artista, essa população teve acesso negado às grandes casas de cultura por décadas.
Ao tratar de uma periferia, mesmo que americana, nos anos 1930, “Porgy and Bess” causou furor em sua estreia, e mais ainda por levar um elenco lírico preto aos palcos. Ainda assim, foi um sucesso estrondoso, se transferiu de Boston para a Broadway e, em turnê, protestou contra a segregação da plateia no National Theater, em Washington.
Já sua primeira montagem europeia, na Dinamarca, foi encerrada abruptamente a mando da ocupação nazista do país, enquanto o “black face”, prática hoje amplamente condenada, em que atores brancos pintam o rosto, era proibida pelo próprio Gershwin ao liberar novas encenações.
“Há um caminho que a sociedade trilhou ao longo desse tempo, refletindo e agindo em relação à sua negritude”, diz Passô. Nessas diferentes interpretações sobre o papel de “Porgy and Bess”, a obra se tornou clássica no teatro e também no cinema, em adaptação estrelada por Sidney Poitier e Dorothy Dandridge em 1959.
É um caso raro, ainda, de uma obra com influência profunda do jazz, que transita com naturalidade entre a ópera e o teatro musical a íntegra pertence a grandes salas, como o La Scala de Milão, embora versões reduzidas tenham tido sucesso na Broadway, arrematando prêmios Tony.
Por isso mesmo, chegou a ser rejeitada por puristas, que nesta versão devem estranhar o uso de microfones, mesmo que num volume baixo. Incomum à ópera, a decisão de microfonar o elenco se deu pela grande quantidade de solos e coros da obra, que tem quase quatro horas de duração, segundo sua diretora.
Este é, portanto, um “Porgy and Bess” que quer ter vida própria, o que o põe em sintonia com o espírito da própria obra, segundo Passô. “Muitas das discussões tem a ver com dilemas, porque esta é uma ópera que nasce da cultura negra sendo observada, não nasce de dentro. Eu quero que esta montagem seja uma observação nossa sobre a obra do Gershwin. É uma montagem que nasce de uma dança de reapropriações”, afirma.
PORGY & BESS
– Quando Ter., qua., e sex., às 20h; Sáb. e dom., às 17h; Até 27/9
– Onde Theatro Municipal de São Paulo – Praça Ramos de Azevedo, s/n, SP
– Preço De R$ 33 a R$ 210, ingressos disponíveis em theatromunicipal.org.br
– Autoria George Gershwin
– Elenco Luiz-Ottavio Faria, Latonia Moore e Bongani J. Kubheka
– Direção Grace Passô e Roberto Minczuk